Num dos programas de análise da Premier League, no início da década passada, Andy Gray, um ex-avançado escocês tornado comentador, cunhou uma das frases que mais circulam nas redes sociais sobre aquilo que é a dificuldade de jogar em determinados estádios de futebol enquanto visitante.
Findava o ano de 2010, numa fase em que tanto Cristiano Ronaldo como Lionel Messi, estavam no pico das suas faculdades (físicas e psicológicas) e dominavam o futebol europeu, ao serviço de Real Madrid e Barcelona, respetivamente. Depois de louvar os atributos dos dois craques e a capacidade de marcar golos, Andy deixou a famigerada questão no ar:
Mas será que o conseguem fazer numa noite fria e chuvosa em Stoke? - Andy Gray, 2010
O Stoke City atualmente nem está na sua melhor fase enquanto clube, mas a frase perdura na ponta da língua dos adeptos, que não têm reservas em reproduzi-la sempre que querem acusar um atleta de ter a vida facilitada num qualquer outro campeonato.
Descontando a pequena sobranceria inglesa no que toca à qualidade do seu futebol, a verdade é que há uma crença generalizada de que jogar noutro estádio que não o seu é sempre mais difícil.
Para que não restem dúvidas, arregacemos as mangas e investiguemos esta questão, recorrendo aos factos!
O “fator casa”
Nesta minha pesquisa pela verdade, houve um investigador que se destacou por ter elaborado uma quantidade considerável de estudos neste tópico. Richard Pollard, agora no Departamento de Estatística da Universidade Estatal Politécnica da Califórnia, foi um dos pioneiros na análise de dados de partidas de futebol e há até quem diga que criou a famosa métrica de golos esperados (xG).
Richard foi inspirado pelo trabalho de Charles Reep, por muitos visto como o “Padrinho” da análise moderna do futebol. Terá até sido Richard a apresentar Reep ao já de si revolucionário Graham Taylor, que com uma abordagem e táticas inovadoras, assentes na análise de dados, liderou o Watford (presidido por Elton John, sim esse mesmo, o cantor!) a 3 subidas de divisão em 5 anos, culminando com um épico segundo lugar no principal escalão do futebol inglês, na época de 1982-83.
No entanto, hoje falo-lhe aqui do Sr. Pollard, pelos seus estudos no tema da vantagem de jogar em casa. A primeira dissertação data de 1986, mas foi posteriormente atualizada, em 2005. Antes de entrar em detalhes, começo por lhe dizer, para que não haja dúvidas e cortar já o suspense, que as equipas de futebol por esse mundo fora têm de facto uma vantagem por jogarem no seu estádio, perante os seus adeptos.
O método de Pollard, que foi utilizado em 48 ligas europeias, desde 1996 a 2002, calculou a percentagem de pontos ganhos nos jogos em casa do total de pontos obtidos num determinado campeonato. Um valor de 50% significa que não há vantagem de jogar em casa, uma vez que os pontos ganhos em casa e fora são exatamente os mesmos. Por conseguinte, quanto maior fôr a percentagem, mais forte é o fator casa. Este método, mesmo sendo simples, tem poder explicatório suficiente. As principais conclusões a reter foram:
Há diferenças significativas entre ligas - A liga Albanesa tem uma preponderância do fator casa de 79%, enquanto que a da Letónia tem 52,5%;
As ligas do Top 5 têm valores semelhantes - as percentagens compreendem-se entre 60% e 65% para as primeiras divisões;
O fator casa perde força à medida que se desce na pirâmide das competições - nos campeonatos ingleses verificou-se 60,7% para a primeira divisão e 55,1% na 9ª;
Há uma diminuição da força do fator casa ao longo dos anos - no caso da primeira divisão do futebol inglês, a percentagem entre 1888 e 1900 era de 67,9% e entre 1992 e 2002, era de 60,6%;
Num outro estudo do mesmo autor, foi também possível retirar algumas conclusões sobre o futebol feminino. Numa análise a 47,042 jogos de 26 competições europeias, entra 2004 e 2010, a vantagem de jogar em casa também foi verificada no jogo das senhoras, se bem que os efeitos foram inferiores, com a média a ficar pelos 54,2% enquanto a dos homens se situou nos 60,0%. Um dado ainda mais interessante neste estudo foi o facto de o Índice de Desigualdade de Género, que quantifica o estatuto da mulher em cada país, ter a capacidade de prever as diferenças entre o jogo das feminino e masculino - quanto mais parecido é o estatuto das mulheres e dos homens num determinado país, menor é a diferença entre o fator casa nas respetivas ligas.
Causas
Uma das grandes limitações destes estudos, mais pela dificuldade do que pela falta de tentativa, é descobrir as causas para estas diferenças que se verificam quando se joga em casa.
Para além do frio e da chuva de Stoke-on-Trent, há muitos outros motivos que poderão explicar o fator casa. Ora vejamos as potenciais causas:
Adeptos
Começando pelo apoio dos adeptos, que será porventura o aspeto que todos queremos acreditar fazer a diferença, os resultados são intrigantes.
Por um lado, já constatámos no estudo de Pollard que quanto mais elevada é a divisão em que se joga, mais força o fator casa tem, e isso tem como pressuposto uma maior audiência no estádio. No entanto, nas divisões inferiores, a vantagem continua a ser verificada.
Para além disso, a pandemia do Covid-19 deu aos investigadores uma oportunidade única de avaliar e corroborar esta temática. Num estudo de 4844 jogos no continente europeu, na época de 2019/20, que foi jogada com e sem adeptos nas bancadas, os resultados são claros. As equipas da casa nos jogos à porta-fechada obtiveram menos pontos e marcaram menos golos do que quando tinham adeptos a puxar por si.
Por outro lado, é quase impossível saber exatamente como é que este apoio dos adeptos se traduz em resultados práticos. Será pela intensidade dos cânticos, pela densidade nas bancadas ou pela intimidação dos árbitros? E será que os adeptos dão força à equipa da casa, ou intimidam o adversário?
Viagens
Os resultados dos vários estudos no que toca ao cansaço gerado por viagens são inconclusivos.
No entanto há um dado que é claro: nos derbies, ou seja, jogos entre equipas da mesma cidade onde não há necessidade de viajar, a preponderância do fator casa é mais reduzida.
Familiaridade
Naquilo que é a familiaridade com as condições do estádio, há muito a reter.
Campos com dimensões incomuns, um piso diferente ou o tipo de bola, são tudo fatores que foram provados terem impacto no fator casa.
Para além disso, num estudo sobre o campeonato brasileiro, conclui-se que as equipas do norte e do sul do Brasil têm geralmente mais vantagem ao jogar em casa, quando comparadas com as do centro. O clima e o cansaço da viagem são dois dos fatores encontrados como possíveis explicadores do resultado.
Ainda no âmbito das especificidades dos estádios, a altura é um aspeto que já será do conhecimento dos atletas sul-americanos que jogam as provas continentais e têm de ir jogar a La Paz, na Bolívia, a mais de 3600 metros de altitude.
Mas mesmo na Europa, um estudo conclui que equipas cujo estádio seja em altitudes mais altas, beneficiam significativamente de um fator casa acrescido - mais especificamente, por cada 100 metros de diferença de altitude entre os estádios da equipa da casa e da visitante, a probabilidade dos visitados ganharem o jogo é superior em 1,1 pontos percentuais. Agora não desatem todos a construir estádios em montanhas, por favor!
Enviesamento do árbitro
Pollard diz-nos também que há indícios muito fortes de que os árbitros são influenciáveis. Quer seja na marcação de faltas ou lançamentos, ou na atribuição de cartões amarelos e vermelhos, parece ser claro que os árbitros tendem a favorecer a equipa da casa. No entanto, não é possível concluir que isso advenha da pressão do público, mesmo que seja o mais provável.
Territorialidade
Esta é talvez a explicação que mais me surpreendeu e que acredito ser bastante provável. Sendo o ser humano um “animal instintivo”, é natural que esteja sempre pronto a proteger o seu território. Ora, num jogo de futebol, não só isto é plausível, como está provado de duas formas. A primeira é que os jogadores da casa experienciam um aumento na atividade hormonal antes dos jogos e o outro é que há equipas que beneficiam de um acréscimo no fator casa por estarem inseridas numa localização geográfica isolada ou historicamente conflituosa.
Táticas especiais
Jogar em casa e jogar fora é sempre diferente na cabeça de jogadores e treinadores e por isso, há um ajuste, premeditado ou não, na forma como as equipas se apresentam no estádio do adversário. Assim, será natural que uma equipa visitante que se apresente mais defensiva, esteja de facto a maximizar as oportunidades da equipa da casa para ser mais ofensiva e ficar mais perto de conquistar os três pontos.
Fatores psicológicos
Quer o fator casa seja explicado pelo apoio dos adeptos, pelo árbitro ou pela fragilidade do adversário, a verdade é que os jogadores sabem que ele existe e isso pode muito bem ser uma das principais razões para ele existir, se é que me faço entender. Uma pescadinha de rabo na boca, portanto.
Interação de causas
O gráfico abaixo é proposto também por Pollard e representa aquele que é o cenário mais provável no meu entender - o fator casa é explicado pela interação de todas estas causas e não de uma ou duas em específico.
Conclusão
Ainda há muito caminho a percorrer na análise desta temática e há indícios que nos levam a crer que poderá haver fatores explicativos que ainda não foram contemplados em nenhum estudo.
No entanto, o mais provável é que todos tenham impacto uns nos outros e que essa conjugação seja a força por detrás da vantagem intrínseca de jogar em casa.
Em termos práticos, haverá muitas medidas a ser tomadas a partir desta informação para as equipas que jogam em casa e, para bem do futebol, espero não estar a dar uma novidade a nenhum treinador ou dirigente desportivo:
Procurar ter no seu estádio características únicas que possam surpreender os adversários - altura da relva, comprimento ou largura do campo, luzes específicas ou até a distância da bancada para a relva;
Criar estratégias de motivação dos jogadores que demonstram que já estão em vantagem, mesmo antes do jogo começar;
Promover interação dos atletas com o público, de forma a galvanizar ambos;
Implementar táticas mais ofensivas e correr mais riscos durante o jogo;
Procurar relacionar a história do clube com o instinto básico de sobrevivência e proteção do território;
Colocar pressão no árbitro (isto pode ser discutível, consoante a visão de cada um sobre limites éticos);
Poupar um atleta chave cansado num jogo em casa, em vez de fora;
Escolha jogos em casa para experimentar uma tática nova ou um sistema a que os atletas ainda não estejam habituados;
Dê a estreia a um jovem atleta da formação num jogo em casa, onde sinta menos pressão e mais apoio das bancadas.
Com estas recomendações não posso prometer vitórias, mas os dados dizem-nos que certamente irão estar mais perto disso.
Por esta semana é tudo, e só me resta terminar esta edição da Factball dizendo que com tudo o que aqui foi explanado, talvez seja justo afirmar que Messi e Cristiano Ronaldo não conseguissem marcar tantos golos em Stoke como marcavam nas temperaturas amenas de Espanha.
Um abraço e uma trivela de Ricardo Quaresma,
João Francisco
Prolongamento
Facto 🔍
Durante alguns anos a seleção nacional do Brunei disputava as competições de clubes da Malásia, chegando mesmo a vencer a Taça da Malásia em 1999.
Leitura 📖
Entrevista a Vicente Moreno, treinador do Al-Shabab da Arábia Saudita
🖋 Pedro Barata na Tribuna Expresso