Houve um tempo em Portugal em que as grandes discussões intelectuais e existenciais se passavam em cafés. Desde as grandes tertúlias que lançaram as bases do modernismo em Portugal com Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor e Mário de Sá Carneiro na Brasileira do Chiado, até às dissertações políticas de Afonso Costa, Manuel de Arriaga e Bernardino Machado no Martinho da Arcada.
Talvez por isto, ou talvez não, as grandes discussões do mundo do futebol, o desporto do povo, também se tenham desenrolado em cafés. Quando isso ainda acontecia, os assuntos (perspicazes ou obscenos) nasciam, cresciam e morriam aí mesmo, sem nunca sequer chegarem aos ouvidos dos intervenientes no jogo. O máximo que poderia acontecer era um analista ou jornalista levar algumas das conversas de café a uma coluna de jornal, a uma rádio ou televisão, mas já numa versão polida e serena.
Nunca, até ao aparecimento das redes sociais, foi tão fácil impingir os nossos devaneios a outras pessoas, jogadores de futebol inclusive. E contrariamente àquilo que se passava nos cafés, onde as conversas se evaporavam assim que o estabelecimento fechava, hoje as opiniões são eternas, acessíveis a qualquer hora e corroboradas por meio de likes e partilhas por um sem fim de almas que colocaram tanto pensamento naquilo que estão a apoiar, como colocam no ato de respirar.
Enfim, não há muito a dizer sobre as redes sociais que ainda não tenha sido dito. Unem-nos e separam-nos. Mostram-nos o melhor e o pior da sociedade. Acima de tudo são um elemento que faz parte do quotidiano de todos nós e que não sairá tão cedo de cena, qualquer que seja o nome da app predominante.
A grande maioria de nós não tem nem de perto nem de longe a visibilidade social dos atletas de elite que estamos habituados a ver jogar semanalmente. Mesmo assim, conseguimos ter uma ideia daquilo por que eles passam sempre que algo não corre como “os especialistas” atrás de um teclado acham que deveria ter corrido.
Lebron James, certamente um dos melhores basquetebolistas de sempre, entre Junho de 2020 e Junho de 2021, foi alvo de mais de 122.500 mensagens abusivas só na rede social Twitter! Cento e vinte e duas mil e quinhentas mensagens abusivas! Para um dos melhores atletas que o mundo já viu! Incrível.
No futebol, no mesmo estudo, o principal alvo foi Marcus Rashford, com mais de 32.000 mensagens abusivas.
Para além destes dois exemplos, todos sabemos o que aconteceu com Bukayo Saka, depois do internacional inglês falhar uma grande penalidade na final do Europeu de Futebol de 2020(21). Mas há muitas, muitas, muitas, muitas mais instâncias desta temática.
Com todos estes pedaços de informação a resposta ao título parece óbvia, mas olhemos com alguma minúcia para esta questão e vejamos se há realmente um impacto de todo este drama na performance dos jogadores.
Impactos
Infelizmente não há muitos estudos específicos desta temática aplicados ao futebol, mas os resultados encontrados para seres humanos no geral e para outros desportos continuam a ser relevantes. Talvez no futebol seja tudo exponenciado a níveis insuportáveis, mas só análises futuras nos poderão dar certezas.
Antes de tudo, é importante dar uma visão geral do que as redes poderão fazer a um ser humano, antes de olharmos para os atletas. Um grande estudo de mais de 500.000 jovens norte-americanos demonstrou que os adolescentes que despendem grandes quantidades de tempo nas redes sociais estão mais propícios a apresentar problemas de saúde mental quando comparados com outros que passam mais tempo em atividades presenciais.
Olhando agora para a os meios de comunicação tradicional, que poderão ser vistos como o antecedente natural das redes sociais, há vários estudos que nos mostram que os aqueles são vistos como um fator de stress para os atletas. Quer seja pelo constante escrutínio público, quer pela pressão de participar em atividades de comunicação para promoverem o seu desporto.
Agora, quanto ao impacto das redes sociais em desportistas, há muito a dizer.
Um estudo de 2018 a atletas universitários nos Estados Unidos afirma que o uso de redes sociais poderá resultar em níveis mais baixos de performance nos atletas;
O Comité Olímpico Australiano, em 2015, publicou também que as mensagens que os atletas recebem são um potencial elemento distrativo e o feedback público negativo pode produzir emoções indesejáveis nos atletas. Isto foi levado ao extremo pela nadadora olímpica Emily Seebohm, que era favorita a vencer uma medalha de ouro em 2012, e que afirmou ter sido prejudicada até pelas mensagens positivas.
Sabemos ainda que alguns atletas são afetados através da comparação de conteúdo dos seus adversários nas redes sociais levando-os a experienciarem sentimentos de ansiedade.
Um outro estudo sobre o uso da plataforma Facebook por parte de 298 atletas de vários níveis indica que daí resultaram disrupções de concentração. O uso do sistema de notificações instantâneas aumentou ainda mais o risco de isso acontecer. Esta dissertação mostra-nos ainda 68,1% da amostra usou o Facebook duas horas antes da competição enquanto que 31.9% usou durante.
Finalmente, trago-lhe uma pesquisa baseada em entrevistas a atletas de elite australianos que nos dá alguns relatos em primeira mão de como as redes sociais se manifestam em elementos distrativos:
Obrigação de responder;
Suscetibilidade a comentários negativos;
Pressão de criar e manter uma marca;
Conteúdo dos adversários;
Tal como disse anteriormente, fica realmente a faltar algo mais específico para o futebol e com uma abrangência global, ou pelo menos continental, desde as ligas mais modestas, ao famoso top 5 europeu.
Neste sentido, deixo ainda aqui uma rápida sugestão de pesquisa para os clubes de futebol por esse mundo fora: medir performance ao longo de uma época, com vários jogadores, onde em metade da época os jogadores podem consultar as redes sociais e na outra metade não podem. Depois do que aqui foi demonstrado, penso que este estudo nos poderia trazer ainda mais clareza nesta questão.
Conclusão
Seria pouco honesto da minha parte dar-lhe a conhecer simplesmente os efeitos negativos das redes sociais. Em vários dos estudos que aqui mencionei é também relatado que as redes sociais podem ter um papel relevante na gestão de estados de espírito, uma vez que o seu efeito distrativo pode ser usado para retirar pressão de um atleta. Para além disso, estas redes podem servir como uma forma de aproximação a familiares e amigos que não podem estar presentes nas competições e assim até poderão servir como uma alavanca de motivação e humor.
No entanto fica claro que os principais efeitos são nefastos e que são limitativos das capacidades mentais dos atletas. Ao longo da minha pesquisa foram mencionadas algumas soluções que passam por entregar a gestão das redes a uma empresa de relações públicas, deixar de as usar total ou parcialmente (Phil Jones e Declan Rice) ou simplesmente desactivar as notificações.
Mas e da parte dos clubes? Será que os clubes devem impor regras para protegerem os seus ativos? Obrigá-los a descansar fisicamente não terá exatamente a mesma validade do que obrigá-los a descansar mentalmente?
E quanto ao treino para lidar com as redes sociais? Não será tão ou mais essencial que o treino para lidar com a imprensa? Ou até como o treino tático ou físico?
Há muito a fazer e não são precisas reformas estruturais dentro dos clubes. Basta haver uma preocupação real com os atletas e dar-lhes apoio psicológico adequado, quer seja por meio de profissionais externos ou de staff do clube. E não se esqueça que o futebol não é só a Premier League e a La Liga com os seus milhões de libras e euros. Os jogadores que jogam nas segundas, terceiras, quartas e quintas divisões de cada país sofrem dos mesmos problemas e muitas vezes não têm nem os recursos financeiros nem as estruturas à sua volta para os apoiar nesses momentos críticos das suas carreiras.
O mais grave é que estas soluções são todas “pensos rápidos” que os atletas e os clubes podem implementar para conseguirem lidar melhor com este problema sistémico. A verdade é que, quer seja racismo, discriminação de género, homofobia, ou qualquer outro estigma, eles têm que ser resolvidos por outras vias, nas mais altas instâncias de cada país.
A falta de humanização do futebol pode e deve ser combatida. Todos os dias, por nós, que amamos o jogo e os seus protagonistas.
Um abraço e um giro de Johan Cruyff,
João Francisco
Prolongamento
Facto 🔍
Paolo Maldini capitaneou o AC Milan na vitória na final da Liga dos Campeões em Inglaterra exatamente 40 anos depois do seu pai ter feito o mesmo.
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🖋 Adam Crafton no The Athletic