Todos sabemos que o nosso planeta está cada vez mais “pequeno” e não é porque esteja de facto a encolher, mas sim porque estamos todos mais perto uns dos outros, quer seja em termos de influências (cultura, moda, gastronomia…) quer em termos de facilidade de locomoção entre países.
No mundo do futebol, o cenário não difere, mas somente desde os meados dos anos 90 do século passado.
Tudo começa com o caso de Jean-Marc Bosman, um médio belga que representava o Royal Football Club de Liège.
Em 1990, Bosman acertou a sua transferência para os franceses do Dunkerque (mais uma vez a pequena cidade francesa a fazer parte da história mundial) mas viu a saída ser bloqueada porque o clube belga exigiu um valor para o passe que ultrapassava as possibilidades dos franceses. Após esta obstrução o seu salário foi ainda cortado em 75%, o que levou o atleta a interpor um processo num tribunal belga que eventualmente ascenderia às altas instâncias europeias.
Assim, em 1995, após uma batalha legal de 5 anos, o Tribunal de Justiça da União Europeia dá razão a Bosman, transformando para sempre este desporto numa indústria com movimentações livres de trabalhadores e também de capitais. Basicamente significou que, a partir daquele momento, qualquer jogador em final de contrato poderia mudar de clube sem a necessidade de taxas de transferência, dando assim muito poder negocial aos jogadores.
Mas não foi para uma aula de história que lhe quis escrever esta semana. O Acórdão Bosman foi de facto o evento que desencadeou as alterações mais significativas no futebol moderno, e precisamente por isso fará sentido analisar o seu impacto no passado recente.
Olhemos então para os principais países importadores e exportadores de talento, bem como para alguns padrões que podem ser retirados dos dados estatísticos.
Vamos a isso, sempre com factos claro!
Movimentos migratórios
Num dos grandes estudos do CIES, voltamos a ter acesso a dados muito interessantes sobre os movimentos migratórios dos jogadores de futebol. A análise foi feita para um período de 6 anos, de 2017 a 2022, e englobou 135 ligas profissionais e 2198 equipas, espalhadas por 5 das 6 confederações da FIFA.
O objeto do estudo são os expatriados, isto é, jogadores que jogam fora do país onde cresceram e de onde saíram por motivos relacionados com o futebol. Em 2017, no primeiro ano do estudo, foram contabilizados 11983 atletas. No final dos seis anos, o número ascendeu a 13929, ou seja, um aumento de 16%. Esta categoria já representa 22% do total do número de jogadores no mundo.
Comecemos por analisar o número de expatriados por confederação. Sem grande surpresa são as ligas da UEFA que “importam” a vasta maioria de jogadores, com cerca de 73% do total de atletas em análise. A juntar a isso, os clubes da UEFA são também os que têm uma maior percentagem (27,3%) de atletas expatriados nos seus plantéis.
Por outro lado, as ligas da CONMEBOL, a confederação sul-americana, são as mais “patriotas”, com apenas 8% dos expatriados em análise e com apenas 9,2% dos jogadores de cada plantel a serem expatriados.
Em termos dos países “exportadores” o Brasil é, sem surpresa para muitos, a principal fonte de talento para o mundo inteiro, com quase 9% dos jogadores espalhados pelas ligas em análise neste estudo a virem deste país.
Destaque também para França, que se assume na segunda posição, superando a Argentina, que completa o pódio.
Olhando agora para os países “exportadores” que no período em análise sofreram alterações mais significativas, o destaque vai para França, em termos absolutos (+208 jogadores) e para os Países Baixos, em termos relativos (+59,6%).
Quanto a evoluções negativas, que não estão na tabela, mas que nos são mostradas no relatório, o pódio é composto por Sérvia (-69 expatriados), Roménia (-46) e Coreia do Sul (-43).
Finalmente, olhemos para aquilo que são os principais eixos migratórios de jogadores, ou seja, as trajetórias mais comuns entre país de origem e de destino. Portugal acaba por ser o principal destino para jogadores brasileiros: 231 jogavam nas três principais ligas portuguesas em 2022. Em segundo lugar temos a Escócia que é onde os jogadores ingleses têm mais mercado. A completar o pódio temos os argentinos que são os mais requisitados no Chile.
Conclusão
Dos dados mostrados em cima, há algumas conclusões que podem ser retiradas.
Em primeiro lugar, a proximidade geográfica e o idioma são fatores determinantes nos movimentos de atletas. De todos os exemplos presentes na tabela dos principais eixos migratórios, é fácil traçar um padrão de idioma ou vizinhança geográfica, com exceção da Alemanha e da Turquia (que mesmo assim já tem fortes ligações em termos migratórios). Isto pode ter vários motivos, mas penso que seja justo dizer que há dois que se destacam:
Este tipo de proximidades aumentam as probabilidades de uma transferência ser bem-sucedida, uma vez que é mais fácil o atleta se ambientar ao novo clube e começar a ter rendimento rapidamente.
O conhecimento dos mercados vizinhos ou que falem a mesma língua por parte dos departamentos de scouting é naturalmente superior e de mais fácil acesso.
França poderá tornar-se muito em breve no principal exportador de talento mundial. O ascendente é notório, e se a isso juntarmos o decréscimo pelo terceiro ano consecutivo do número de brasileiros no estrangeiro, é possível conjeturar uma alteração no topo deste ‘ranking’.
Esta evolução tem claramente origem naquilo que tem sido o empenho dos clubes franceses em formar jogadores de elevado nível e que tem tido também resultados ao nível da sua seleção nacional (desde 2016, três grandes finais e um Campeonato do Mundo).
As evoluções negativas no número de expatriados, cujo pódio é constituído por Sérvia, Roménia e Coreia do Sul, também nos podem dar indicações do trabalho que tem sido feito nesses países, uma vez que tem havido mais dificuldade em criar grandes gerações de jogadores de elevado nível. Desinvestimentos na formação de atletas ou dificuldades financeiras dos clubes podem ser alguns dos motivos.
Para finalizar, há ainda dois pensamentos que gostava de lhe deixar.
O primeiro é que o mercado do futebol não é assim tão global como se pensa. Os clubes, mesmo com toda a tecnologia de análise de jogadores ao seu dispor, continuam a dar prioridade à proximidade cultural e geográfica. A verdade é que isso facilita imenso todas as etapas do processo de contratação de um atleta: observação e análise de testemunhos (treinadores anteriores, colegas de equipa, familiares, etc.), negociação, integração, treino, e finalmente atingir o rendimento em contexto competitivo.
Em segundo, penso que isto também serve como mais um aviso, como tem vindo a ser feito nestas minhas publicações, sobre aquilo que é o futebol de elite e os restantes 99% da indústria. Nem todos os clubes têm a capacidade de contar com os chamados “Player Liaison Officers”, ou como eu lhes gosto de chamar “as amas dos jogadores”, cujo trabalho é especificamente resolver todas as questões que aconteçam fora das 4 linhas. Desde abrir contas bancárias e encontrar casas para os jogadores, como tratar de arranjar uma escola ou creche para os filhos do jogador ou recomendar dentistas. A verdade é que na grande maioria dos clubes, a integração dos jogadores é feita pelos treinadores, pelos colegas de equipa e pelos agentes (aqueles que se preocupam). Assim, obviamente, para um pequeno clube em Portugal, será mais fácil contratar um jogador brasileiro ou angolano do que um egípcio ou sul-coreano.
Por esta semana é tudo, meu caro leitor.
Sempre que sentir que está a lutar em vão por uma causa porque não irá desfrutar das consequências da sua luta, lembre-se de Bosman, que nunca mais jogou profissionalmente desde que os litígios começaram, mas que mudou para sempre o jogo que amamos.
Um abraço e um sprint de José Mourinho,
João Francisco
Prolongamento
Facto 🔍
Entre 1986 e 2023 o Arsenal alinhou no onze inicial com pelo menos um jogador que tenha jogado sob as ordens de Arsène Wenger.
Leitura 📖
Fabio Vieira: Arsenal’s ‘reguila’
🖋 Art de Roché e Jack Lang no The Athletic