O futebol feminino tem sido cada vez mais falado.
Seja pelos recordes batidos em assistência na Liga dos Campeões pela equipa do Barcelona, seja pelo aumento de 200% na assistência da Super Liga Inglesa, ou pelas mais de 50.000 pessoas que viram a seleção de Marrocos perder em casa a final da Taça das Nações Africanas deste ano, para a África do Sul.
A juntar a todo este burburinho, há de facto um crescimento impressionante em quase todas as métricas financeiras. O mais recente relatório da FIFA que compara as épocas 2019/20 e 2020/21 mostra-nos, entre muitas outras coisas:
um aumento anual das receitas comerciais dos clubes de 33%;
um aumento anual das receitas de transmissões televisivas dos clubes de 22%;
um aumento dos gastos dos clubes com salários de jogadoras de 38%;
23 das 30 principais ligas têm um patrocinador oficial.
A relevância desta variante do futebol não pode ser discutida e por isso, é obrigatório percebermos as diferenças e as semelhanças com a variante masculina, que porventura achamos que conhecemos melhor.
Assim sendo, e para fugir um pouco aos tópicos financeiros que todos gostam de opinar, analisemos uma questão que os clubes de futebol têm de ter em consideração para a gestão dos seus plantéis e que as próprias atletas necessitam de entender para gerir os seus contratos.
Será que as futebolistas atingem o pico de carreira mais cedo que os futebolistas? Ou será que é mais tarde? Ou é tudo igual?
Vejamos os factos.
O que é o “pico”?
Os mais engraçados de vós dir-me-ão que é uma ilha nos Açores. Muito giro, sim, e é um facto, pelo que tenho de lhe dar mérito pela resposta.
No entanto, este pico é outro, e pode ser definido como o momento temporal em que um futebolista está nas melhores condições técnicas, táticas, físicas e psicológicas da sua carreira.
Ora, nesta minha busca pela verdade deparei-me com vários modelos que já abordaram a questão do pico de carreira no futebol, mesmo não tendo encontrado nenhum que compare homens com mulheres.
Alguns deles parecem-me bastante simplistas, e focam-se no sucesso desportivo das equipas e em rácios de golos para retirar conclusões sobre o pico de performance dos seus atletas.
Outros, mais elaborados, que levam em consideração métricas específicas para cada posição no campo, também me parecem insuficientes e com variáveis que podem impactar a performance que não estão relacionadas com o estágio de desenvolvimento dos atletas.
Por fim, um outro modelo usou dados de performance dos jogadores, que são contabilizados jogo a jogo, nos seus respetivos campeonatos. Uma vez que as performances estão diretamente relacionadas com a equipa onde o jogador joga e o resultado do jogo, este modelo também me parece desajustado.
Infelizmente, ou felizmente, não pude pegar em nenhum modelo académico já existente para fazer a minha análise, pelo que tive de construir um por mim próprio (com alguma ajuda externa, obviamente).
O modelo Factball
Durante a pesquisa, deparei-me com dois estudos que me inspiraram na elaboração do modelo final.
Primeiro, um estudo da Australian Research Council (ARC) Centre of Excellence in Population Ageing Research, que analisa a idade dos atletas olímpicos desde 1920.
Estes dados permitiram-me ter uma primeira resposta à pergunta que dá título a esta edição, mesmo sabendo que nos jogos olímpicos há diversas modalidades e uma grande parte delas individuais. No entanto, uma competição destas tem uma particularidade: só os melhores dos melhores participam, sem exceções e sem limites.
Por outro lado, um estudo de Tom Worville para o The Athletic, sugere usar os minutos jogados como métrica da disponibilidade e qualidade dos atletas.
A simplicidade desta ideia roça a genialidade.
Como diz o autor “a melhor qualidade é a disponibilidade”, e eu não poderia concordar mais. Qualquer que seja a idade de um jogador, a quantidade de tempo de jogo diz muito das suas capacidades, quer sejam técnicas, táticas, físicas, ou psicológicas. A juntar a isto, todos sabemos que o objetivo do futebol é ganhar jogos e os treinadores, na grande maiorias das vezes, escolhem os melhores que estão disponíveis num determinado momento.
No entanto, para este modelo ser perfeito, não poderia usar dados de clubes de futebol. Ao usar minutos jogados por clubes, estaria automaticamente a desconsiderar diversas variáveis que impactam seriamente a capacidade de retirar conclusões. Antes de tudo, o facto de os clubes não terem recursos infinitos para contratarem jogadores em pico de carreira para todas as posições. Isto irá “dar minutos” a jogadores mais jovens ou mais experientes, simplesmente por serem mais baratos e não por serem melhores. Depois, a gestão de esforço, devido a calendários cada vez mais preenchidos, também retiram minutos aos melhores jogadores, simplesmente para que não se desgastem em jogos menos importantes. Finalmente, a gestão de contratos é outro dos fatores que pode impactar esta análise. Não raras vezes sabemos de casos de jogadores que por não quererem renovar contrato ou por terem tido problemas disciplinares não são selecionados para jogar, mesmo sendo a melhor opção disponível.
Agora, juntando tudo isto, só há uma solução possível: usar os minutos jogados em Mundiais de futebol, o expoente máximo deste desporto.
Assim nasceu o primeiro modelo estatístico da Factball, que poderá consultar aqui.
Análise
Pois bem, depois de juntar todos os minutos jogados, por todas as jogadores e jogadores, nos últimos oito mundiais de futebol da FIFA de cada categoria, separando-os por idades, e calculando a percentagem de minutos que foram jogados por cada “ano”, obtive o seguinte gráfico:
A diferença é visível, e nota-se que de maneira geral, o futebol feminino em Mundiais é jogado por atletas mais jovens.
Por todas as razões mencionadas acima, considero que se possa responder positivamente ao título desta edição, e afirmar que as mulheres atingem o pico de carreira mais cedo que os homens.
Finalmente, para lhe dar um valor exato de quando os e as futebolistas atingem o pico, o melhor que lhe posso oferecer são as médias ponderadas das idades:
Homens: 27,18
Mulheres: 25,91
Deixar ainda um agradecimento ao FBref, quiçá o maior portal de dados de futebol do mundo, que permitiu recolher todos os elementos necessários de forma tão simples e cómoda.
Valores atípicos curiosos
Como esta publicação gosta de lhe dar alguns factos para ir mandando aos seus amigos naquela mensagenzinha de Whatsapp, deixo-lhe aqui alguns outliers que surgiram na pesquisa e que são bastante curiosos.
Mulheres
A “mulher” mais nova num Mundial de futebol foi Yun Hyon-hi, em representação da Coreia do Norte. Como vê, coloquei mulher entre aspas, não por motivos de identidade de género, mas porque tinha na altura 15 anos, celebrados um dia antes do torneio começar! Extraordinário que umas semanas antes esta menina ainda com 14 anos, algures na Coreia do Norte, do alto dos seus 1.96m, recebeu a notícia de que iria estar presente num Mundial de futebol. Infelizmente, não jogou nenhum minuto.
Ainda falando de juventude acentuada, temos Cecilia Santiago. A guarda-redes mexicana foi titular nos três jogos da sua seleção no Mundial de 2011 com uns espantosos 16 anos, totalizando 270 minutos.
Quanto a longevidade extrema, temos Formiga, do Brasil, como um caso inigualável. Com uns mirabolantes 41 anos, começou a titular os três jogos do Brasil no Mundial de 2019, tendo jogado um total de 209 minutos.
Referência ainda para a russa Marina Burakova que em 2003 totalizou 360 minutos ao cabo de 4 jogos completos com 37 anos e Sandrine Soubeyrand, que com a mesma idade, completou 461 minutos no Mundial de 2011 pela seleção francesa nos seus jogos que disputaram.
Homens
Quanto aos homens, e falando de casos precoces de sucesso temos obviamente de falar de Salomon Olembé. O jogador dos Camarões com 17 anos totalizou 183 minutos ao cabo de 3 jogos no Mundial de 1998.
No entanto, o mais novo de sempre foi o Norte-Irlandês Norman Whiteside, com 17 anos de idade em 1982, que por uma questão de dias, “rouba” o record ao atual Presidente da Federação Camaronesa de Futebol, Samuel Eto’o, também com 17.
Falando de longevidade fora do vulgar, comecemos pelo lendário Peter Shilton. Com 41 anos, defendeu a baliza da Inglaterra durante 7 jogos no Mundial de 1990, contabilizando 720 minutos.
Temos ainda o famoso camaronês Roger Milla, que com 42 anos jogou 70 minutos repartidos por dois jogos no Mundial de 1994, marcando um golo contra a Rússia.
Destaque ainda para Fernando Clavijo que, com 38 anos e ao serviço dos Estados Unidos, jogou 3 partidas quase completas no lado direito da defesa americana. No último, já na fase a eliminar contra o Brasil, é expulso aos 86 minutos.
Em jeito de prémio de consolação, temos ainda os famosos casos dos guarda-redes Essam El-Hadary e de Faryd Mondragón. Com 45 e 43 anos, respetivamente, representaram os seus países em Mundiais. O primeiro, ao serviço do Egipto, em 2018, jogou a última partida da fase de grupos e chegou a defender um penalty. O segundo, pela Colômbia, jogou os últimos 5 minutos da fase de grupos do torneio de 2014.
Conclusão
E é com estes factos curiosos que acabo a edição desta semana.
Quanto ao tema principal, espero que as razões que me levaram a construir o modelo tenham ficado claras. De forma resumida, é assumido que minutos jogados em Mundiais de futebol representam o pico de carreira dos atletas.
Com a análise do modelo, ficou claro que as mulheres atingem o pico de carreira mais cedo que os homens e que a diferença andará em torno de 1 ano, sendo que para os homens é por volta dos 27 anos e para as mulheres por volta dos 26.
Mesmo não adotando nenhum dos outros modelos mencionados mais acima, as conclusões não diferem muito e os intervalos por eles reportados abrangem sempre os valores aqui descritos.
Quanto às razões para isto, há muito que se pode dizer e especular mas essa já não é a área a que esta publicação se dedica. Não obstante, fico receptivo a ler o que pensa sobre o assunto e poderá deixar-me as suas “teorias” nos comentários ou no meu Twitter.
Espero que tenha disfrutado. Para a semana há mais.
Um abraço e um golo olímpico de Megan Rapinoe,
João Francisco
Prolongamento
Facto 🔍
O futebol feminino foi proibido no Reino Unido durante 50 anos, desde 1921 até 1971.
Leitura 📖
An alternative analysis of the World Cup – by the man who helped shape Guardiola’s City
🖋 Juanma Lillo, no The Athletic