Numa noite fria de Dezembro de 1998, o tilintar dos talheres ecoava no salão principal, como é hábito nas reuniões de uma família portuguesa. Pratos bem compostos com o melhor que a gastronomia pode providenciar, copos cheios de vinho tinto regional, e uma mesinha de apoio com as sobremesas e o whisky "digestivo" à espreita para finalizar o banquete...
O palco estava montado para mais uma noite de felicidade de uma família portuguesa, na belíssima cidade de Tomar, no centro de Portugal.
Eis que, em mais um momento de “evangelização” por parte de um ávido adepto benfiquista, surgiu a grande questão da noite, direcionada a uma criança de 4 anos, cheia das suas certezas tão firmes quanto um castelo de cartas.
- Ó rapaz, quando é que mudas para o Benfica e deixas o Porto? O Benfica é o maior clube de Portugal! Já viste bem a imponência do Estádio da Luz? E já reparaste que o teu sangue é vermelho e não azul? Então e não sabes que a águia é um animal majestoso que reina nos céus e os dragões nem existem, são uma mentira?
- Sim, mas o Porto é que ganha, eu até já fui ao estádio das Antas, o meu sangue é vermelho mas o céu é azul e os dragões cospem fogo e matam as águias todas…
- Sim, mas tu já reparaste que és o único da tua família que é do FC Porto? Eu sou do Benfica, o teu pai é do Benfica, a tua mãe também, a tua irmã também, os teus padrinhos, igual e todos os teus primos também… Não achas que também devias ser do Benfica?
A criança não parecia convencida, então foi necessário lançar o derradeiro argumento:
- Olha que até o Santo António é do Benfica!
Esta “armadilha” do Santo António não é inocente, visto que havia uma estatueta, de dimensões consideráveis, do santo padroeiro de Lisboa e de Pádua no hall de entrada da casa.
Aquela questão terá ficado a pairar na cabeça do jovem apaixonado pelo futebol, que uns dias mais tarde foi “apanhado” pela mãe a perguntar à estatueta se ela realmente também era do Benfica.
Alguma resposta afirmativa deve ter sido dada, mesmo não sendo vocal… E esta é a história de como “nasceu” mais um benfiquista, que não o era desde o berço, mas sim, desde que teve a audácia de questionar o sentido das suas escolhas.
Quer apoie o seu clube por influência do seu pai ou do seu primo mais velho da grande metrópole, por motivo das vitórias recentes e títulos conquistados ou até por intervenção divina, a verdade é que todos os motivos são válidos, desde que não se ande a mudar todas as semanas.
Esta pequena memória levou-me a querer perceber com atenção quais as diversas razões que existem para apoiarmos os clubes que apoiamos e o que isso poderá significar para os clubes de futebol nas suas estratégias de atração e retenção de sócios.
As razões
Para analisarmos esta questão olhemos para um grande estudo da Associação de Clubes Europeus, datado de 2020, que contou com uma amostra de mais de 14.000 pessoas, 2.000 de cada um dos mercados analisados: Reino Unido, Espanha, Alemanha, Polónia, Países Baixos, Índia e Brasil.
Quando questionados sobre quais as razões para apoiar o seu clube de futebol do coração, estas foram as respostas obtidas:
“Eu gosto do estilo de futebol que o clube pratica” - 33%;
“Eu gosto dos valores do clube” - 30%;
“Eu apoio este clube porque eles têm sucesso” - 28%;
“Os meus pais encorajaram-me a apoiar este clube” - 26%;
“Era o clube geograficamente mais próximo de onde eu cresci” - 25%;
“É o clube geograficamente mais próximo de onde eu vivo agora” - 20%;
“Os meus amigos apoiam todos este clube” - 20%;
“Eu apoio este clube porque o meu jogador favorito costumava jogar lá” - 20%.
Quando questionados os mais jovens, na faixa etária dos 8 aos 12 anos, há três razões que se sobrepõem a todas as outras: o sucesso do clube (44%), a influência dos pais (37%) e por ser a equipa que usam nos videojogos (33%).
Este relatório diz-nos ainda que a importância da proximidade geográfica com o clube aumenta com a idade do adepto, sendo 22% na faixa etária dos 16 aos 24 anos e 31% na faixa dos 55 aos 64 anos.
O estudo mostra-nos também que a influência do parceiro na escolha de clubes é maior no sexo feminino, com 21% das fãs de futebol a afirmarem que a escolha do clube do parceiro é um fator chave, em contraposição com apenas 6% nos homens.
Em termos dos mercados analisados, o principal motivo de cada um é:
Reino Unido - “Os meus pais encorajaram-me a apoiar este clube” - 30%;
Alemanha - “Eu gosto dos valores do clube” - 35%;
Países Baixos - “Eu gosto do estilo de futebol que o clube pratica” - 35%;
Espanha - “Eu gosto dos valores do clube” - 36%;
Polónia - “Eu gosto do estilo de futebol que o clube pratica” - 31%;
Brasil - “Os meus pais encorajaram-me a apoiar este clube” - 37%;
Índia - “Eu gosto do estilo de futebol que o clube pratica” e “Eu apoio este clube porque eles têm sucesso” - 41%;
Podemos ainda ver que no único mercado onde o futebol não é o desporto favorito no país (Índia), as dinâmicas são um pouco diferentes. Das razões que são predominantes nos outros mercados, várias não têm tanto peso no país asiático, e o inverso também é verdade. A influência dos pais e a proximidade geográfica caem para segundo plano enquanto a influência dos videojogos e dos jogadores, têm um peso muito superior.
Conclusão
Tendo agora os factos em nossa posse, tudo se torna mais fácil de analisar.
Uma das primeiras deduções que podemos fazer e que é provavelmente uma surpresa para os adeptos de clubes dominantes nos seus campeonatos: ganhar não é tudo. Eu sei que esse é o conceito de futebol profissional e é para isso que os atletas jogam e os treinadores treinam, mas “os adeptos” dizem-nos que se houver um estilo atrativo de jogo e o clube for fiel aos seus valores, o clube pode satisfazer perfeitamente as suas necessidades, mesmo sem ganhar títulos.
Em termos de mercados aqui analisados, há também várias conclusões práticas que podemos tirar.
No Reino Unido, a participação em competições europeias e o sucesso desportivo representam 10% e 16%, valores relativamente baixos. Por outro lado, a proximidade geográfica na juventude e a influência dos pais, têm um peso de 30%. Isto pode ser visto, provavelmente, como uma das grandes razões do sucesso das ligas inglesas. O apoio pelos diversos clubes está bem dividido e isso faz com que muitos clubes tenham a capacidade de encher os seus estádios e tenham uma massa adepta vasta que queira comprar o seu merchandising.
Na Alemanha, a cultura de “ir ao estádio” parece ser clara, uma vez que a proximidade geográfica atual tem um peso superior à proximidade geográfica na juventude e à influência dos pais. A juntar a isso, o estilo de jogo é um dos principais motivos para se apoiar um clube, o que parece privilegiar o espetáculo em detrimento dos resultados.
Nos Países Baixos, o estilo de jogo é o grande motivo vigente, com mais de um terço dos adeptos a escolherem-no. Talvez porque a supremacia em termos de títulos esteja concentrada em dois clubes (nas últimas 50 épocas, só por 8 vezes o campeão não foi Ajax ou PSV), os adeptos procurem um fator diferencial nas suas equipas e necessitem que elas pratiquem um futebol atrativo ao invés de se preocuparem em ganhar títulos.
Em Espanha, a influência dos pais, os valores do clube e o estilo de jogo são de longe os grandes motivadores de apoio. Poderá ser um sinal de que o foco na comunidade deverá ser uma das prioridades de cada clube.
Na Polónia, a proximidade geográfica atual e a facilidade de ver jogos da equipa indicam-nos que, tal como na Alemanha, há uma componente forte de ida ao estádio. (Será por serem dos poucos países neste estudo que permitem bebidas alcoólicas nos estádios? Poderá ser um tópico para analisar noutra edição da Factball.)
O Brasil é o mercado onde a proximidade geográfica na juventude é mais relevante, mas os 5 principais motivos assumem pesos semelhantes. No entanto, juntando a isso o facto de “jogar em competições europeias” não ser relevante para os brasileiros, podemos inferir que o mercado interno de futebol é o predominante, o que, para quem acompanha futebol, não é surpreendente.
Por último, na Índia, há claros sinais de que os adeptos apoiam principalmente clubes estrangeiros, uma vez que a proximidade geográfica não é muito relevante e há um peso extra dos videojogos e dos grandes craques mundiais. Este é também um dos países onde há um maior esforço dos vários clubes da Premier League inglesa em tentar “angariar” adeptos.
Esta análise mercado-a-mercado poderá ajudar os clubes de futebol, e principalmente as ligas, a ajustar as suas estratégias de comunicação e marketing, bem como a providenciarem o máximo de valor possível aos seus adeptos. Onde é mais relevante ganhar, deverá comunicar-se a competitividade de um campeonato e exponenciar a forma como clubes pequenos têm possibilidades reais de ganhar aos maiores. Por outro lado, se o mais importante são os laços familiares que o futebol criou, deverá promover-se isso, com bancadas família, bilhetes mais acessíveis, e campanhas de novos sócios para jovens, por exemplo. Claro que isto, para ser feito da forma mais eficiente e eficaz, terá de ser analisado clube a clube (o que em muitos deles já é uma realidade).
Tal como há muitos motivos para se apoiar um clube, poderá haver, no futuro, uma liga que se foque em cada um deles, de forma a atrair novos adeptos, que é isso que tanto preocupa as altas patentes do nosso jogo. Espero, no entanto, que nunca esqueçamos as origens e que o futebol continue a ser um jogo.
Um abraço e um livre impossível de Roberto Carlos,
João Francisco
Prolongamento
Facto 🔍
John Terry marcou mais golos na Premiel League pelo Chelsea do que Andrés Iniesta marcou na La Liga pelo Barcelona.