Caro leitor,
hoje quero falar-lhe da equipa que participa em todos os jogos de futebol desde 1891, quer sejam de elite ou dos escalões mais baixos. Da equipa que por mais boas prestações tenha, nunca ganha. Da equipa que não disputa troféus. Da equipa que não tem adeptos nem estádio a que chamar casa. Da equipa pela qual ninguém torce.
Hoje, como já percebeu, falamos das equipas de arbitragem de futebol.
Em Portugal, há não muito tempo, um conhecido humorista fez um episódio de uma série onde, por um jogo, tornou-se árbitro de futebol. Para além da vertente humorística pela qual vale a pena conferir o episódio, o artista conseguiu de forma muito clara mostrar a dificuldade incrível que é ser-se árbitro.
Desde as movimentações no campo e o cansaço físico, à constante comunicação com a sua equipa e com os jogadores, a gestão de emoções (próprias, dos jogadores e dos treinadores), a velocidade a que é necessário aplicar as leis do jogo e para além de tudo isto, a pressão sentida para se tomar a decisão correta. A tarefa é inquestionavelmente difícil e quiçá impossível de ser executada na perfeição.
Como se a tarefa já não fosse complexa o suficiente, há ainda um omnipresente “bafio cultural” no seio da cultura desportiva (certamente na portuguesa e muito provavelmente em muitas outras) que, na minha experiência como adepto, pode ser separado em três principais escolas de pensamento:
Os árbitros são incompetentes;
Os árbitros são corruptos;
Os árbitros têm preferência clubística, o que os impossibilita de serem imparciais.
O facto de haver uns quantos árbitros que se possam encaixar em todas estas categorias, faz com que a tarefa de defender esta classe de intervenientes do jogo seja difícil, mas tal como em tudo na vida, são as generalizações que enviesam a realidade. Fica ao critério de cada um de nós ter o discernimento para culpar somente os culpados e deixar os restantes prosseguirem a sua vida com normalidade.
Quando se fala de árbitros para criticar as suas decisões, há uma expressão muito comum usada sempre em prol das nossas equipas: a dualidade de critérios, i.e., a aplicação de dois critérios diferentes em duas situações muito semelhantes. No entanto, e já nem falando da capacidade de cada um para avaliar infrações, atrevo-me a dizer que no futebol não há maior dualidade de critérios do que aquela aplicada para julgar jogadores e árbitros. Um passe errado que custe um golo, um corte defeituoso, um golo falhado de baliza aberta, são tudo situações que nunca terão o mesmo peso do que uma grande penalidade mal assinalada ou um cartão vermelho por mostrar.
Por tudo isto, já todos sabemos o impacto que as decisões dos árbitros podem ter no sucesso ou insucesso do nosso clube, mas hoje gostava de lhe mostrar o impacto das nossas decisões nas vidas dos árbitros.
Olhemos para os factos.
O que nos diz a literatura
O primeiro estudo que gostaria de abordar aqui foi elaborado em 2019 pela Universidade de Northumbria, em Newcastle, Reino Unido. Três investigadores analisaram os traços de personalidade de 185 árbitros de futebol, espalhados pelas três categorias de profissionalização do futebol inglês: profissional, intermédio e amador.
Para estes indivíduos, foram elaboradas medições de robustez mental, locus de controlo, assertividade e comparação social, todos critérios considerados importantes para desempenhar as funções de árbitro de futebol. A grande conclusão a retirar do estudo é que para estes atributos psicológicos, os árbitros profissionais obtiveram resultados significativamente melhores do que os intermédios ou amadores, independentemente da idade. Quer sejam atributos intrínsecos dos árbitros que lhes permitiram ascender ao topo da sua profissão ou sejam atributos adquiridos via treino específico, a verdade é que são necessários para desempenhar o papel de árbitro de topo porque os níveis de pressão são altíssimos.
Ainda em relação à robustez mental, há um dado muitíssimo interessante referido nesta dissertação que provém de dois outros estudos que usaram a mesma escala de robustez mental, de onde se pode concluir que mesmo os árbitros dos níveis intermédio e amador têm melhores resultados de robustez mental do que vários grupos de atletas que competem desde o nível internacional até ao nível regional.
Em segundo lugar, dou-lhe a conhecer outro estudo, desta feita na Turquia em 2022, onde se inquiriram 433 árbitros de futebol das ligas turcas profissionais. Em traços gerais, concluiu-se que as seguintes categorias de árbitros reportaram maiores níveis de depressão, ansiedade e stress:
árbitros mais novos (18-27 anos) em comparação com os mais velhos (+38 anos);
árbitros solteiros em comparação com os casados;
árbitros de ligas inferiores em comparação com as ligas superiores;
árbitros com menos rendimentos, mais preocupações com o desempenho, com mais lesões e com apoios sociais inadequados.
Isto é um claro indicador de que os árbitros de escalões inferiores e com menos experiência estão sobre tanta ou mais pressão do que os de elite, mas que ainda estão mais mal preparados para lidar com ela.
E desengane-se quem pensa que isto só se aplica no vertente masculina do futebol. O último estudo de que lhe quero falar, publicado em 2021, investigou as experiências e o estado da saúde mental de 12 árbitras de jogos masculinos e femininos em Inglaterra. Para além da identificação de vários problemas comuns a todas as inquiridas (toxicidade e abuso em ambientes dominados por homens que incluem discurso sexista e pejorativo) ficou claro ainda que não há mecanismos de apoio e de educação para lidar com tais situações.
Conclusão
Dos dados acima mencionados podemos facilmente concluir que para se ser um árbitro de elite, é preciso um carácter muito específico para se impor perante os intervenientes do jogo, mas acima de tudo para lidar com o “barulho” que se faz ouvir após cada partida, quer seja nos estádios, quer seja nas redes sociais.
Parece ainda claro que não há infraestruturas nem mecanismos suficientes para dar apoio mental aos árbitros e provavelmente será ainda necessário reforçar tudo aquilo que são treinos específicos mentais para lidar com a profissão.
Se a estes dados juntarmos que o número de novos registos de árbitros em 2021 teve um decréscimo entre 20% a 30% em Inglaterra, ficamos claramente com a ideia de que os árbitros são uma espécie em vias de extinção e que ao invés de serem tratados como um dos problemas do futebol, deveriam por ventura ser apoiados e preservados para não continuarem a haver jogos de escalões inferiores a serem adiados devido à falta deles.
Além disso, também me parece óbvio que nós, enquanto adeptos, temos um papel muito importante na melhoria do atual cenário ou na sua contínua degradação.
E é nesse seguimento que as restantes conclusões de hoje aparecem em forma de apelo para os outros intervenientes do jogo.
É imperativo que:
se mude a postura agressiva atualmente utilizada por parte de treinadores, jogadores, staff e adeptos;
se deixe de pensar que os árbitros tentam prejudicar uma das equipas;
a emoção deixe de ser desculpa para tudo o que se passa dentro e fora das quatro linhas;
se acabem com análises exaustivas da prestação da equipa de arbitragem após cada jogo de futebol para expiar os erros de um qualquer clube de futebol;
se deixe de exigir de um árbitro em 90 minutos o mesmo nível de perfeição que se exige a um juiz de instrução criminal com meses ou anos para analisar um caso;
cada um de nós pense no que seria termos o mesmo nível de pressão e ofensa gratuita nos nossos trabalhos, a cada decisão que tomamos.
Acima de tudo, é imperativo que o futebol seja futebol e não mais nem menos do que isso.
Um abraço e um primeiro toque de Dennis Bergkamp,
João Francisco
Prolongamento
Facto 🔍
Alfredo Di Stefano, na época o melhor jogador do mundo, foi oferecido por empréstimo ao Manchester United, mas a FA bloqueou o negócio.
Leitura 📖
FIFA World Cup 2022 - Post Tournament Review & Player Survey
🖋 FIFPRO in cooperation with Football Benchmark