Permita-me que comece esta edição da Factball com uma pergunta:
Qual foi a última vez que viu um golo de fora da área?
Pense bem e não vale invocar aquele videozinho de highlights que lhe apareceu no Twitter, no Instagram ou no TikTok.
Tente recordar-se do último jogo a que assistiu. Viu muitos remates de fora de área? E os que poderá ter visto, foram feitos pela equipa mais forte ou pela mais fraca? E foram mais frontais, ou mais descaídos para um dos lados?
Pois é, lamento informar, mas aquele remate que todos ansiamos ver, bem fora da grande área, colocado ao ângulo ou com tanta força que o guarda-redes fica pregado ao chão, está em vias de extinção.
Eu sei que não era isso que gostaria de ouvir enquanto fã de futebol, mas é a verdade.
A grande questão é, porquê? Porque é que isto está a acontecer?
É assim tão inaceitável tentar marcar de longe? Os jogadores andam a perder força de remate devido ao treino específico? As novas bolas de futebol já não são boas para isso? Ou será que tudo mudou com o nascimento de uma métrica revolucionária?
Olhemos para os factos!
O que são os Golos Esperados (xG)?
Para analisar a falta de remates de longe que tem vindo a assolar o mundo do futebol, temos de entender uma das principais inovações da última década no que toca à análise de dados no futebol: a métrica dos Golos Esperados (xG).
Comecemos com a definição e o modelo da StatsBomb, uma das grandes empresas nesta área de atividade:
De forma simples, Golos Esperados (xG) é uma métrica projetada para medir a probabilidade de um remate resultar em golo.
Um modelo xG usa informações históricas de milhares de remates com características semelhantes para estimar a probabilidade de um golo numa escala de 0 (falhanço certo) a 1 (golo certo).
Por exemplo, um remate com um xG de 0,2 é aquele que geralmente esperamos que seja convertido duas vezes a cada 10 tentativas.
Como mencionado numa das edições anteriores da Factball sobre a importância do factor casa, há quem diga que Richard Pollard inventou esta métrica na década de 80 ou terá, pelo menos, inspirado o seu desenvolvimento. Mas a verdade é que qualquer modelo de golos esperados que tenha sido desenvolvido há 5 anos ou mais, será neste momento obsoleto. Isto porque há sempre novos atributos a integrarem os modelos das empresas que a isto se dedicam.
De modo geral, todos os modelos de xG consideram os seguintes fatores:
A distância para a baliza;
O ângulo para a baliza;
A parte do corpo com que o remate foi feito;
O tipo de assistência, ou ação prévia ao remate (passe longo, cruzamento, livre direto, drible, etc…)
Mas para além destes, cada empresa dá o seu cunho e personaliza com fatores diferentes. No caso do modelo da StatsBomb, este inclui ainda:
O posicionamento e estado do guarda-redes;
O posicionamento de todos os outros atacantes e defesas no enquadramento;
A altura da bola no momento do remate.
No caso das grandes penalidades, há uma ligeira diferença uma vez que lhes é atribuído um valor estático de 0,78 xG, ou seja, é esperado que se marquem, mais ou menos, 4 em cada 5.
Esta métrica e outras dela derivadas são, até agora, a melhor forma tentar prever e explicar o desempenho de uma equipa e consequentemente a sua classificação no final de uma época. A StatsBomb refere um estudo de Lars Maurath que demonstra que, dependendo do modelo, entre 79% a 93% das épocas de uma equipa deverão ter correspondência entre golos efetivamente marcados e golos esperados, com um intervalo de confiança de 95%.
xG na prática
Para que não restem dúvidas, não há nada como olharmos para um exemplo prático desta métrica em ação.
Ao mostrar somente esta imagem, sem qualquer explicação, penso que ninguém conseguirá descortinar a que diz respeito. Se disser que respeita a um jogo que ocorreu em 2016, já muitos conseguirão deduzir do que se trata, principalmente os portugueses. Então se disser que foi a 10 de Julho no Stade de France, já não restam dúvidas.
Estes foram os dois remates de Éderzito António Macedo Lopes, mais conhecido como Éder, na final do Campeonato da Europa de 2016 em França, contra a seleção anfitriã.
Primeiro, um cabeceamento, após um canto, que tinha um xG de 0,4898, e foi defendido por Hugo Lloris, o guardião francês. O cabeceamento é feito muito próximo da linha da pequena área, o que contribui para aumentar a qualidade do remate, mas o facto do avançado português estar muito pressionado e haver muitos jogadores entre a bola e a baliza, fazem com que o valor fique abaixo dos 0,5.
Depois, o golo. Um remate colocado, de fora da área, que ofereceu o primeiro grande título a Portugal. Este tinha um xG de 0,1060, ou seja, seria necessário tentar 10 vezes para que a bola entrasse uma delas. Podemos facilmente constatar que a distância para a baliza, a obstrução de Umtiti, e o facto de Éder vir de um lance a solo contribuem para um valor tão baixo.
Este exemplo, para além de lhe dar uma visão prática do que significa, serve também para dizer que a estatística é isso mesmo, somente estatística. Haverá golos de 0,99 xG falhados e outros de 0,01 xG marcados.
O impacto do xG nos remates de fora da área
Agora que percebeu o que esta métrica significa, acredito que se esteja a perguntar “Ok, tudo bem, entendi, mas porque é que isto é tão relevante e o que é que isto tem que ver com os remates de fora da área serem cada vez mais escassos?”
O facto de todos os clubes de futebol terem acesso a este tipo de informação, faz com que haja uma preocupação extra dos treinadores em incentivar os seus jogadores a evitarem remates de posições em que seja extremamente improvável marcar golo.
Essas indicações juntamente com a alta profissionalização e preparação dos atletas de hoje em dia, fez com que, tal como aconteceu no basquetebol, o jogo tenha mudado para sempre.
Vejamos a evolução dos remates nas 5 principais ligas europeias:
Na época de 2010/11, a mediana da distância de remate era de 19,7 metros (a linha tracejada que pode ver no gráfico). Para além disso, quase 1 em cada 3 remates era efetuado a mais de 25 metros da baliza.
Por sua vez, na época de 2021/22, a mediana já foi de 17,3 metros e somente 1 em 5 remates foram efetuados a mais de 25 metros da baliza.
Conclusão
Mesmo sabendo que isto não será uma novidade para a grande maioria dos clubes, considero que há importantes conclusões a retirar destes dados:
Em termos estratégicos, os clubes já estão a fazer um esforço para priorizar melhores em detrimento de mais oportunidades. A estatística diz-nos que, devido ao desvio padrão, uma equipa que tenha 1.0 xG de dois remates de 0.5 cada está mais perto de ganhar o jogo do uma que tenha 1.0 xG mas de 5 remates de 0.2 cada. Isto leva-me a pensar que muitas vezes, o uso da métrica xG por remate, pode ter mais valor do que o normal xG, uma vez que nos dá ainda mais detalhes sobre que tipo de oportunidades uma equipa está a criar.
Para além disso, no que toca a recrutamento, o remate de longe começará a perder preponderância na escolha de jogadores para contratar e será dada mais relevância à capacidade para penetrar a linha defensiva, quer seja através de passes ou dribles.
Finalmente, no treino de camadas jovens, o passe e as rotinas táticas terão um peso muito maior na carga de treino do que o remate de longe e a potência de remate.
Na visão macro, todas estas inovações como o xG têm um objetivo: ganhar jogos sendo o mais eficaz possível quando se tem a bola em nossa posse. No entanto “os dados” estão a retirar-nos um dos momentos pelos quais vale a pena ir aos estádios e que foram também responsáveis por nos apaixonarmos por este jogo.
Interessante também é pensar qual o ganho para os adeptos de um golo com um remate de fora da área? Não é para eles que o clube existe? E qual o ganho para a equipa por ter os seus adeptos em delírio? Não se sentirão mais apoiados e galvanizados?
Bem sei que esta questão não é simples e percebo as motivações de querer ganhar os 3 pontos. Mas se jogarmos futebol somente de acordo com a estatística não estaremos a caminhar para um beco sem retorno?
Se somente a estatística imperar, então Éder não devia ter rematado dali, em Julho de 2016.
Mas felizmente AINDA somos humanos e não computadores.
Um abraço e uma roleta de Zinedine Zidane,
João Francisco
Prolongamento
Facto 🔍
O Nottingham Forest é a única equipa que foi mais vezes campeã da Europa do que campeã do seu próprio país.
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Entrevista a Helena Costa, coordenadora de scouting do Watford
🖋 Hugo Tavares da Silva na Tribuna Expresso