Caríssimos,
hoje quero falar-vos de uma habilidade no futebol que ainda não entra nas estatísticas que nos aparecem nas transmissões televisivas, mas que está a ganhar reconhecimento nos meios de comunicação.
Alertado por um amigo que acabara de descobrir este vídeo sobre as capacidades do “pescoço” de Messi, decidi abordar este tema que poderá ter implicações na forma como as camadas jovens treinam e no futuro tecnológico do futebol.
Falemos então do “scanning”, uma característica dos atletas que pode muito bem ser a diferença entre um jogador bom e um jogador de topo. Ou será que o seu impacto real não é assim tão significativo?
É isso que vamos descobrir, recorrendo, como sempre, aos factos!
O que é e como fazer?
Longe de ser uma inovação ou até mesmo uma técnica recente, o scanning é definido pelos especialistas como:
Um movimento ativo da cabeça, onde o olhar de um jogador é temporariamente desviado da bola para recolher informação e assim preparar-se para o momento subsequente de quando se relacionará com a bola. - Jordet et al, 2020
No entanto, virar a cabeça só por si não tem qualquer valor e é preciso saber-se exatamente o que se procura e quando o fazer.
O tipo de informação que se tenta obter com esta ação está relacionado com a proximidade e movimentações dos adversários, o posicionamento dos colegas de equipa e a visualização de espaços abertos por onde uma jogada se possa, potencialmente, desenvolver.
Para além disto tudo, existe o momento correto para o fazer. Diz-nos um dos grandes especialistas na matéria, Geir Jordet, que o momento perfeito para um jogador desviar o olhar é entre toques na bola e imediatamente a seguir a um toque na bola. Isto significa que quando um outro jogador está em contacto direto com a bola, é errado desviar o olhar, porque fundamentalmente estamos a perder a oportunidade de perceber para onde ela irá a seguir. No entanto, assim que recolhemos essa informação, devemos desviar o olhar e recolher outro tipo de dados.
Efeitos práticos
Este tema tem sido fortemente analisado nos últimos anos e como é algo fácil de observar e contabilizar através de recursos audiovisuais, as conclusões são bastante concretas e fiáveis.
Para começar, dou-lhe a conhecer um dos grandes estudos nesta área, intitulado “Scanning, Contextual Factors, and Association With Performance in English Premier League Footballers: An Investigation Across a Season”. Consiste num estudo de 27 futebolistas de elite, que atuavam na Premier League em 2020, ao longo de 21 jogos, o que resultou em 9574 observações.
Neste documento existem algumas conclusões muito relevantes a reter:
Os jogadores fizeram, em média, 3 scans nos 10 segundos anteriores a receberem a bola;
Os jogadores fizeram significativamente mais scans quando a posse de bola foi mantida após as suas ações com a bola do que quando a perderam;
Nas observações em que o jogador decidiu fazer um passe, foi registado que os passes bem-sucedidos tiveram mais scans do que os passes falhados;
Quanto mais scans fizer um jogador, maior será a probabilidade de executar um passe com sucesso;
Existem diferenças consideráveis no número de scans por segundo de acordo com a posição do jogador. Os médios centro e os defesas centrais são quem mais faz, e os avançados os que menos fazem.
Noutra investigação, de 2021, desta feita na primeira divisão norueguesa (Eliteserien), foram analisados 4 médios centro com idades compreendidas entre os 17 e os 23 anos e que atuavam na primeira equipa dos seus clubes.
Algumas das conclusões mais relevantes do estudo foram as seguintes:
Os jogadores fazem scans mais longos quando a bola está no ar do que quando está no relvado;
Os jogadores fazem scans mais longos quando a bola é passada entre dois jogadores do que quando a bola está controlada, entre toques, pelo próprio jogador;
Os jogadores detetam mais adversários do que colegas de equipa durante os scans;
Existem fortes indícios de que mais de 97% dos scans são tão rápidos que não existe “fixação” do olhar, ou seja, não é possível reparar em detalhes. Os atletas conseguem apenas “tomar nota” na direção do movimento dos outros jogadores e na cor da camisola.
Na terceira e última dissertação que lhe trago hoje foi possível corroborar muitos dos resultados que já tínhamos visto e ainda obter algumas novas informações. Analisemos então o documento “Scanning activity in elite youth football players”, de outro grande especialista na matéria, Karl Aksum.
Neste estudo de 2021, foram analisadas as semifinais e a final dos Campeonatos da Europa de Sub-17 e Sub-19, o que resultou em 1686 situações de ataque por parte de 53 jogadores de campo que estiveram presentes tanto nas semifinais como na final.
Aquilo que já era conhecido sobre os médios centro e os defesas centrais serem os que mais scans fazem foi reforçado, bem como a relação positiva entra o sucesso no passe e a frequência dos scans.
A conclusão inovadora, se bem que esperada, prende-se com o facto dos jogadores Sub-19 terem feito significativamente mais scans do que os Sub-17, indicando que a experiência e a maturidade futebolística são um fator decisivo na execução desta habilidade.
Finalmente, para quem mesmo assim ainda não tiver a curiosidade satisfeita, deixo aqui também uma “masterclass” do autor deste último estudo, presente nos módulos de treino da FIFA.
Conclusão
Penso que não restem dúvidas de que o scanning é uma habilidade importantíssima para todos os jogadores modernos.
Existem já casos muito evidentes de aumentos na performance numa posição específica com a ajuda desta habilidade, como podemos constatar com Haaland. O norueguês, para além de todos os atributos físicos e técnicos, consegue também destacar-se dos outros avançados por fazer mais scans do que a média nessa posição.
Além disso, o facto de haver informação concreta sobre quando e como fazer os scans traz muita objetividade a um desporto que tem, por si mesmo, um sem fim de variáveis em constante alteração.
No entanto, há aqui uma componente que para mim é a mais interessante para o futuro.
O uso de dispositivos de realidade virtual poderá muito rapidamente passar a ser obrigatório nas camadas jovens. Os exemplos de atletas de topo que os utilizam já são muitos, mas a verdade é que, os que hoje jogam nas primeiras divisões, já começaram tarde. Imaginemos quão bom um jogador se poderá tornar se começar a utilizar este tipo de ferramentas desde os 8 ou 9 anos de idade (talvez até mais cedo).
A somar a tudo isto, é bastante plausível que as empresas que desenvolvem estes softwares consigam implementar uma componente de “gamificação” que incentive as crianças a “brincar” dentro desses ambientes virtuais, estando, em simultâneo, a desenvolver as suas capacidades cognitivas, visuais, percetivas e de tomada de decisão.
Finalmente, este é um tipo de exercício que não tem de ser feito em contexto de treino, aumentando incrivelmente a eficiência do tempo com o treinador.
Com o aumento da popularidade do futebol nos Estados Unidos, cuja intensidade só irá aumentar com o Mundial de 2026, e com o envolvimento da Apple neste desporto, não seria de estranhar que o Apple Vision Pro até já viesse com uma aplicação pré-instalada para treinar esta habilidade… Fico à espera da comissão, Tim “Apple”!
Por esta semana é tudo. Espero que este tema não lhe tenha causado uma distensão muscular no pescoço!
Um abraço e uma defesa de escorpião de René Higuita,
João Francisco
Prolongamento
Facto 🔍
O maior estádio de futebol do mundo é o Rungrado 1st of May Stadium, em Pyongyang, na Coreia do Norte, com capacidade para 150.000 pessoas.
Leitura 📖
No more pundits acting like fans, please
🖋 Michael Cox no The Athletic