Hoje gostaria de lhe falar de algo que me surpreendeu muito quando eu frequentava o Mestrado em Negócios do Futebol em parceria com o FC Barcelona, no Johan Cruyff Institute. Talvez a revelação tenha sido tão inusitada por eu nunca ter pensado nela até então, mas principalmente por me ter ajudado a perceber muito melhor o mundo do futebol.
Foi-me dito de várias formas e por profissionais de diferentes áreas do futebol, mas de forma simplificada a mensagem era:
Todo o glamour, riqueza, profissionalismo e nível de detalhe das principais equipas de futebol do mundo não é transversal a toda a organização.
A verdade é que quando nos sentamos no sofá, no café ou na bancada para assistir a um jogo de futebol, só vemos a ponta do icebergue, isto é, a parte ligada ao futebol e ao jogo propriamente dito.
Esta ponta do icebergue é onde eu incluo os jogadores, os treinadores, os preparadores físicos, os diretores desportivos, os diretores técnicos, os médicos e os fisioterapeutas. Basicamente todos aqueles que é possível ver pela televisão ou perto do relvado em dia de jogo.
No entanto, fora do alcance dos holofotes há uma imensidão de pessoas que fazem com que toda a operação de um clube de futebol seja possível e cujo trabalho facilita imenso a vida daqueles que todos nós crescemos a idolatrar.
É esta a base do icebergue e é composta por todo o pessoal administrativo, contabilistas, financeiros, equipas de marketing, vendas, comunicação, mas ainda cozinheiros, tratadores de relva, roupeiros, motoristas, equipas de limpeza, lavandaria e manutenção de infraestruturas, pessoal de apoio às academias e equipas jovens, entre muitos outros trabalhos que são invisíveis à maioria dos adeptos.
Então é aqui que uma grande questão se impõe: quanto ganha a base do icebergue para conseguir suportar a ponta e fazer com que ela brilhe?
Vamos aos factos!
Quem é considerado “pessoal extra-futebol”?
Se teve oportunidade de ver o documentário sobre a Superliga, uma das sugestões dadas aqui na 13ª edição da Factball, sabe certamente quem é Javier Tebas.
Para além da batalha contra a criação de uma competição elitista e pouco democrática, o presidente da LaLiga tem sido também um dos principais defensores do rigor financeiro no futebol e com isso implementou regras muito específicas de transparência nos campeonatos espanhóis. Desde já o meu obrigado pessoal por isso.
Ora, esta transparência e profissionalização permite que qualquer adepto tenha acesso às contas dos clubes e possa ver em detalhe como eles são geridos.
E foi precisamente esta a razão que me levou a pegar em Espanha para a análise desta semana, em especial no enquadramento legal da LaLiga e na forma como o organismo distingue aquilo que é pessoal desportivo e pessoal não desportivo dentro do clube.
Os gastos com pessoal desportivo dividem-se em duas grandes categorias:
Gastos com o plantel inscrito na LaLiga, ou seja, todos os jogadores alocados à primeira equipa de futebol, bem como o seu treinador, o treinador-adjunto e o preparador físico.
Gastos com o plantel não inscrito na LaLiga, ou seja, contratos profissionais para jogadores de equipas B ou qualquer outro tipo de plantel secundário, bem como os respetivos treinadores, adjuntos e preparadores físicos.
Por sua vez, os gastos com pessoal não desportivo dividem-se em duas categorias:
Pessoal não desportivo técnico onde estão incluídos o diretor desportivo, o secretário técnico, o médico, o delegado, os fisioterapeutas e os técnicos de equipamentos.
Outro pessoal não desportivo onde podemos encontrar os diretores de áreas que não o futebol, todo o pessoal administrativo, os lojistas, os seguranças, marketing, comunicação e ainda pessoal da manutenção e limpeza de infraestruturas.
É precisamente nesta última rubrica que vamos centrar a nossa atenção nesta análise.
As contas dos clubes
Agora que passou o exame teórico, analisemos os números e aquilo que eles nos dizem comparando clubes de dimensões distintas e atuando nas diferentes divisões espanholas.
Os encargos daqui em diante mencionados incluem, para além do salário, despesas com indemnizações ou baixas laborais, contribuições para a segurança social e outros encargos sociais.
Para além disso, nos cálculos de salário médio mensal, foi usado uma base de 14 meses de vencimento, de acordo com a lei laboral espanhola.
Nota: no nome de cada clube poderá encontrar um link para as contas anuais de cada clube, de onde todos os dados foram retirados.
Real Madrid Club de Fútbol | 2020/21 | LaLiga
Comecemos pelo Real Madrid, que na época aqui em análise ficou no segundo lugar do campeonato espanhol.
Durante o exercício de 2020/21, los blancos empregaram em média 819 pessoas, sendo que 377 (46%) eram jogadores e treinadores. Os dados deste clube apresentam a particularidade de incluírem também a modalidade de basquetebol.
No entanto sabemos que os gastos totais do clube com pessoal desportivo para o futebol foram de 322 372 000€ e os gastos com pessoal não desportivo alocados ao futebol foram de 49 441 000€ (13,3%).
Devido à forma como os trabalhadores estão divididos nas contas do clube, não foi possível descortinar quantas pessoas são consideradas staff não desportivo e consequentemente foi impossível calcular um salário médio, como irá ver mais à frente nos outros clubes
Club Atlético de Madrid | 2020/21 | LaLiga
Passemos agora ao Atlético de Madrid que se sagrou campeão da LaLiga no ano em análise.
À semelhança do seu rival apresentado anteriormente, a distinção do staff não está feita de acordo com a norma imposta pela LaLiga e por isso não foi possível fazer os cálculos do salário médio.
De qualquer forma sabemos que os colchoneros empregaram uma média de 807 pessoas ao longo da época e que dessas, 315 (39%) eram jogadores e treinadores.
Sabemos ainda que os gastos com pessoal desportivo foram de 220 751 177,07€ e com pessoal não desportivo foram de 22 906 101,79€ (9,4%).
Sevilla Fútbol Club | 2020/21 | LaLiga
De seguida temos o Sevilla, que na temporada a que as contas analisadas dizem respeito, finalizou o campeonato num respeitoso 4º lugar, apenas atrás de Atlético Madrid, Real Madrid e Barcelona.
Ora, os sevilhanos empregaram em média 397 pessoas, sendo que 145 (37%) foram consideradas pessoal desportivo, 81 (20%) como pessoal não desportivo técnico e 171 (43%) como outro pessoal não desportivo.
Em termos de gastos com o pessoal desportivo, o clube despendeu 115 383 000€ (87%), o que nos permite calcular um salário médio anual de 795 744,83€ e mensal de 56 838,92€.
Por sua vez, o pessoal não desportivo técnico correspondeu a 7 614 000€ (5,5%), ou seja, um salário médio de 94 000€ por ano e 6 714,29€/mês.
Finalmente, o outro pessoal não desportivo custou 10 000 000€ (7,5%) ao clube, o que representou um salário médio anual de 58 479,53€, ou seja, 4 177,11€/mês.
Cádiz Club de Fútbol | 2020/21 | LaLiga
Olhemos agora para o Cádiz, uma equipa no sul do país que na época em questão estava a disputar a primeira divisão espanhola depois de um interregno de 14 anos.
Este clube tinha um total de 136 pessoas nas suas fileiras, sendo que 60 (44%) eram pessoal desportivo, 9 (7%) eram pessoal não desportivo técnico e 67 (49%) eram pessoal não desportivo.
O pessoal desportivo custou ao clube 30 900 175€ (89%), donde podemos retirar um salário médio anual de 515 002,91€, o que representa 36 785,92€/mês.
Já o pessoal não desportivo técnico foi responsável por gastos de 1 221 803€ (3,5%), o que significa um salário médio anual de 135 755€ e um salário médio mensal de 9696,85€.
Por último, o outro pessoal não desportivo retirou dos cofres do clube cerca de 2 620 580€ (7,5%), ou seja, um salário médio de 39 113€/ano ou 2793,79€/mês.
Club Deportivo Tenerife | 2020/21 | LaLiga 2
Vamos agora até à ilha de Tenerife, nas Canárias, para analisar o clube local. Na época em questão militavam na segunda divisão espanhola, onde terminaram no 14º posto.
Os insulares empregaram 138 pessoas nesse ano, sendo que 80 (58%) eram pessoal desportivo, 15 (11%) eram pessoal não desportivo técnico e 43 (31%) eram outro pessoal não desportivo.
O pessoal desportivo representou naturalmente a maior fatia do orçamento, com um custo de 9 317 225,77€ (89%), ou seja, um salário médio anual de 116 465,32€, ou 8 318,95€/mês.
Quanto aos restantes, que teremos de agrupar numa categoria de pessoal não desportivo, custaram 1 177 090,03€ (11%), isto é, um salário médio de 20 294,66€/ano e 1 449,62€/mês.
Real Racing Club | 2020/21 | 2ª División B (3º nível em Espanha)
Finalmente, olhamos para o histórico Real Racing Club, clube centenário da zona da Cantábria. Na época 2020/21 o clube disputava a Segunda División B, ou seja, o terceiro escalão na pirâmide do futebol espanhol.
Nessa época empregava um total de 85 pessoas, sendo 49 (58%) pessoal desportivo e 36 (42%) pessoal não desportivo.
O pessoal desportivo custou ao clube 2 482 595,31€ (75%), donde podemos retirar um salário médio anual de 50 665,21€ ou mensal de 3 618,94€.
Por sua vez, o pessoal não desportivo custou 810 731,09€ (25%), o que equivale a um salário médio de 22 520,31€/ano ou 1 608,59€/mês.
Conclusão
Esta pequena análise tem a limitação de ser uma amostra pequena que não me deixa ser absolutista sobre o estado do futebol mundial. No entanto penso que é o suficiente para retirar algumas conclusões e mais importante ainda, levantar algumas questões sobre a gestão dos clubes de futebol.
Começaria por abordar os gastos totais com pessoal dos diferentes clubes. Não é surpreendente que o Real Madrid gaste muito mais que os outros, mas 10 vezes mais em valor monetário e 6 vezes mais em número de empregados do que o Cádiz, um competidor da mesma divisão, deixa-nos certamente a pensar que são realidades difíceis de serem comparadas.
Depois também fica claro que o pessoal desportivo, em qualquer clube, tem custos muito superiores ao não desportivo. Na LaLiga a diferença é de pelo menos 10 vezes nos clubes aqui apresentados.
Relevar ainda que os gastos com pessoal não desportivo técnico (como os diretores desportivos, os delegados ou os fisioterapeutas) parecem ser uma categoria à parte que acaba por ser injustamente englobada com o resto do pessoal não desportivo. Nos casos de Sevilla e Cádiz, onde tínhamos dados para fazer a separação, podemos ver que as diferenças são enormes e que o resto do pessoal não desportivo é realmente o que ganha menos dinheiro num clube, por larga margem.
E como conclusão final, seria bom refletirmos sobre o que é realmente o futebol. Todos gostamos de ver os grandes craques da Premier League e da LaLiga em ação e todos ouvimos falar do estilo de vida, dos prémios e dos bónus dos jogadores de futebol, mas nunca nos poderemos esquecer que isso é a ponta do icebergue. As 58 pessoas do Tenerife que ganharam em média 1 449,62€ por mês são as que gerem e operam um clube de segunda divisão em todos os aspetos que não envolvam uma bola de futebol. São estas pessoas que tentam, dia após dia, operar milagres com os escassos recursos que têm, recursos esses que são alocados à parte do futebol de forma altamente desproporcional.
Para além das conclusões da minha análise, há ainda indícios de que os ganhos marginais de ter mais um grande jogador no plantel não são assim tão grandes. Uma das revelações publicada no incrível livro Changing the Conversation: Volume III do Twenty First Group foi: “No geral, descobrimos que os jogadores-chave valem no máximo cinco pontos por temporada”.
Juntando todas as peças deste puzzle que hoje aqui lhe mostrei, penso que fará sentido, pelo menos equacionar o impacto que umas pequenas alocações de alguns dos recursos da parte desportiva possam ter na parte não desportiva dos clubes.
Portanto, terminarei a Factball desta semana com uma pergunta para todos os clubes de futebol do mundo: agora que todos entendemos que o futebol não é apenas um jogo, acha que o ganho incremental de ter mais um jogador bem pago na sua equipa equivale o trabalho de algumas pessoas (se não de um departamento inteiro) ao considerar a sustentabilidade e a prosperidade do seu clube a longo prazo?
Não sei a resposta e também não tenho a certeza se a ponta não será responsável por derreter todo o iceberg.
Um abraço e um cabeceamento de Radamel Falcao,
João Francisco
Prolongamento
Facto 🔍
O AC Milan ganhou o campeonato italiano em 1993/94 com apenas 36 golos marcados.
O clube menor só conseguirá ter alguma chance quando investir na base para colher bons frutos...
Talvez a opção seja capturar jogadores novos de países subdesenvolvidos, que é o caso do Brasil, onde jogadores estão saindo cada vez mais jovens daqui...