Caríssimos amigos,
Esta semana escrevo-vos da belíssima, quente e surpreendentemente “verde” Madrid. É aqui que continuarei a minha busca por uma oportunidade profissional no mundo do futebol, e é devido a esta mudança que a Factball teve mais um tempinho no forno.
Mas vamos ao que lhe interessa.
Começo por lhe dizer que, em pleno 2023, a consciência ambiental ainda não é um dado adquirido. De acordo com um relatório do World Economic Forum, cerca de 1% das mais de 11 mil pessoas entrevistadas afirmam que as alterações climáticas não existem e 25% afirmam que essas alterações são causadas principalmente por padrões naturais do ambiente do planeta. Os números aqui apresentados são uma clara melhoria se olharmos 5 ou 10 anos para trás, mas confesso que por esta altura pensei que já TODOS estaríamos embrenhados nesta luta. A verdade é que ainda nem todos reciclam, nem todos tentam poupar recursos e nem todos sequer acreditam que as suas escolhas individuais têm um impacto no planeta.
Neste momento, em média, cada pessoa globalmente produz cerca de 7 toneladas de CO2e (“CO2 equivalente”, uma medida que converte as emissões de todos os gases poluentes em dióxido de carbono) por ano. Para termos algum contexto, 7 toneladas são equivalentes a:
Dois voos de ida e volta de Londres a Hong Kong em classe económica, ou;
Conduzir de Espanha até à África do Sul num SUV grande, tipo Range Rover, ou;
Ver 34 mil horas de televisão (por exemplo, ver a trilogia do Senhor dos Anéis 3 mil vezes seguidas).
No entanto, por ser uma média, sabemos que é injusta: no Malawi o cidadão comum produz 0,2 toneladas de CO2e por ano, no Reino Unido 12,7 e na América do Norte, 21.
Estes dados permitem mostrar que a pegada de cada ser humano, em média, está demasiado elevada (sendo que o “ideal” seriam números a rondar as 5 toneladas), mas e o que dizer do futebol? A atividade normal de um clube tem impacto no ambiente? E será que as grandes instituições que regulamentam o desporto estão ao corrente e já atuaram sobre este assunto?
É isso que vamos descobrir! E já sabe, sempre recorrendo a factos!
As fontes de poluição
O futebol, por ser tão adorado e seguido no mundo inteiro, tem sempre associado a si um vasto conjunto de pessoas, quer seja em eventos ao vivo, em cafés, em casa ou até através de um telemóvel, num transporte público. Hoje em dia já é possível relacionarmo-nos com o futebol de qualquer maneira e feitio.
No entanto, e recorrendo a um ótimo estudo de 2022 elaborado pelo Dr. Leslie Mabon, existem três grandes áreas onde o futebol consegue “ferir” o planeta.
Viagens
Sem grandes surpresas, o impacto das viagens, quer das equipas que o fazem todas as semanas, ou pelo menos semana sim, semana não, quer dos adeptos que as seguem, é um dos maiores problemas.
Do lado das equipas, sabemos que cada uma das 20 equipas da Premier League inglesa na época de 2016/17 produziu uma média de 56,7 toneladas de CO2e. Desta quantidade, cerca de 60% está a cargo do transporte (85% relacionado com os voos) e o restante com alojamento.
Por outro lado, nós, os adeptos, não nos livramos da nossa quota-parte. Um estudo dos níveis 3 ao 7 da pirâmide de futebol inglês revela que na época de 2012/13 os adeptos foram responsáveis pela emissão de 56,237 toneladas de CO2e, o que se traduz numa média de 4,74 kg de CO2e por pessoa por jogo. Sabemos ainda que na Alemanha, mais especificamente na Bundesliga, a pegada ecológica média de um adepto ao longo de toda a época situa-se nos 311,1 kg de CO2e, sendo que 70% dizem respeito ao transporte automóvel.
Para além disto, há ainda fortes indícios de que quanto melhor é a liga e os clubes, maiores níveis de emissões são registados. Isto deve-se principalmente ao tamanho dos estádios (gastos com a construção, manutenção e utilização de estádios maiores) e a todos os extras de luxo que são “consumidos” pelos adeptos e pelos clubes (hotéis de luxo, melhores carros, entre outros).
Produção de lixo
Outra problemática é a produção de lixo nos estádios e nos seus arredores, por parte dos adeptos (nem todos somos japoneses, certo?).
Num dos poucos estudos que recaem sobre esta problemática, ficamos a saber que na época de 2012/13, nos escalões inferiores do futebol inglês, cada um dos 9 milhões de adeptos que foram aos estádios produziu 3,27 kg de lixo. Estamos a falar de cerca de 30 milhões de quilos de lixo numa época.
Produção de carne
Arriscarei, sabendo que posso perder muitos de vós, neste próximo ponto, mas não há como fugir. O consumo de carne, muito associado à comida servida em estádios e ainda presente na maioria da alimentação dos atletas, é também um forte contribuidor para as emissões nocivas. Se não quiser ler as investigações científicas feita sobre este assunto, não se preocupe. Existe já muito material nas populares plataformas de streaming sobre a produção de carne que lhe dará uma ideia do que estou aqui a referir.
Relva
Finalmente falemos do majestoso relvado que nos brinda a cada jogo. Para quem já jogou futebol em pelados, sintéticos e relvados sabem bem que a experiência é totalmente diferente. Começa pelo cheiro a relva acabada de cortar e acaba na superfície macia que nos ampara as quedas. É realmente um luxo poder jogador num relvado natural.
No entanto, os gastos energéticos para os manter também são incríveis. Os gastos com água, eletricidade, fertilizantes e maquinaria de manutenção são os mais recorrentes, mas temos ainda de contar com o aquecimento subterrâneo em alguns estádios e ainda as máquinas de ultravioletas que tentam compensar a falta de sol em diversos países e em determinados momentos da época.
Iniciativas
O mundo do futebol não está alheio a estes problemas e há uma série de iniciativas conduzidas pelas mais altas instituições reguladoras que tentam colmatar estes “consumos”. Infelizmente, estas parecem ainda não ser amplamente aplicadas.
Na minha pesquisa deparei-me com um estudo de David Goldblatt, um especialista em história do futebol com quem tive a oportunidade de aprender no mestrado em Football Business do Johan Cruyff Institute.
Nesta peça, para além de explanar com bastante detalhe aquilo que são os efeitos concretos no planeta dos mais variados desportos, o autor elaborou um quadro que penso ser fundamental apresentar-lhe.
Neste trecho, pode verificar as várias iniciativas que já existem e as que estão a ser aplicadas pelas diversas confederações. Infelizmente não existem muitos tiques, com exceção da FIFA, mais especificamente para o Mundial do Catar.
Para além de não existir um claro comprometimento, podemos ainda constatar as relações íntimas entre o mundo do futebol e as empresas diretamente relacionadas com os combustíveis fósseis.
Uma das iniciativas que mais me entusiasmou é a Sports Positive Leagues, uma organização sediada no Reino Unido, que começou a compilar e a classificar as iniciativas “verdes” dos clubes da Premier League. Sem grande surpresa, o processo evoluiu para outros países e neste momento contam já com 4 campeonatos na Europa. Penso que não existiria melhor forma de convencer os clubes a competir entre si do que criar uma “liga” onde os pontos são atribuídos com base nas iniciativas tomadas para minimizar o impacto negativo da sua atividade no planeta.
Deixo-lhe aqui os três primeiros e os três últimos das mais recentes épocas que fazem parte da análise e no link poderá consultar a classificação completa e os critérios para atribuição dos pontos:
Tottenham Hotspur
Liverpool FC
Manchester City FC
Leeds United
AFC Bournemouth
Nottingham Forest FC
Forest Green Rovers
Bristol City
Norwich City
Existem vários clubes que não participaram e não disponibilizaram os dados.
VFL Wolsfburg
1.FC Koln
FC Bayern Munich
FC Union Berlin
Arminia Bielefeld
Bayer 04 Leverkusen
Olympique Lyonnais
Clermont Foot
AS Saint Etienne
Angers SCO
ESTAC Troyes
Stade Brestois 29
Conclusão
Algo se fez ao longo dos últimos anos para tornar as operações dos clubes de futebol mais sustentáveis e menos nocivas ao ambiente, mas há ainda um longo percurso pela frente.
Em última instância, o objetivo máximo é a neutralidade carbónica e como recomenda Goldblatt na sua investigação, teremos de passar para um empenho sério por parte de toda a cadeia que rege o futebol. Terá de começar com regulamentações e imposições da FIFA e das confederações para com as federações e os clubes. Os objetivos têm de ser claros e têm de ser monitorizados. As parcerias com patrocinadores têm de ser avaliadas. As sanções têm de ser duras e exemplares, podendo mesmo chegar à proibição de participar em competições.
Poderá agora dizer-me que isto é tudo demasiado dramático, que o futebol nem é das indústrias mais poluentes e que há problemas muito mais graves a serem resolvidos antes de nos focarmos nisto…
Infelizmente, estes pontos são inválidos devido a dois simples motivos:
Primeiro porque caminhamos a passos largos para o ponto de não retorno no que à poluição diz respeito, e;
Segundo porque o impacto do futebol vai muito além dos 90 minutos de jogo.
Tal como falado aqui na última edição, o futebol tem um poder inigualável em cativar e mover as pessoas e é nisso que os clubes se têm de focar, porque são eles o elo de ligação entre os “holofotes” e cada um de nós.
Compreendo que tenham de existir iniciativas das grandes organizações como a FIFA e as Nações Unidas, mas não há ligações emocionais dos adeptos com esse tipo de estruturas (ou se as há, talvez sejam mais negativas que positivas). Assim, a responsabilidade terá de recair sobre os clubes e sobre os seus esforços, iniciativas e campanhas para tornar o cuidado com o planeta algo atraente e desejável para as atuais e futuras gerações.
No entanto, e este é o ponto fundamental desta Factball, cada um de nós tem de fazer a sua parte. Não existe outra forma. Consciencialize-se sobre as áreas que pode controlar e atue sobre elas. As suas ações, juntamente com o exemplo que está a dar àqueles que o rodeiam, vão fazer a diferença.
Confie no processo.
Um abraço e um golpe de karaté de Zlatan Ibrahimovic,
João Francisco
Prolongamento
Facto 🔍
O clube mais antigo do mundo reconhecido pela FIFA é o Sheffield FC, fundado em 1857.
Leitura 📖
Karim Benzema’s training routine
🖋 Guillermo Rai for The Athletic
Iniciativa 💡
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