Caríssimos,
esta semana continuamos na senda das arbitragens, mas para falar daquela que será porventura a alteração mais significativa das últimas décadas nas regras do futebol. A tecnologia do videoárbitro, apesar de já estar presente em mais de 100 competições espalhadas pelo mundo, continua a gerar algumas polémicas e acima de tudo, ainda não se tornou num mecanismo consensual entre os adeptos.
O mundo do futebol sempre foi conhecido por oferecer alguma resistência à mudança (e em alguns casos ainda bem), mas isso significa que qualquer alteração leve mais tempo a ser implementada e principalmente a ser universalmente aceite.
Para lhe dar algum contexto histórico, o sistema do videoárbitro surgiu como parte do projeto “Referee 2.0” implementado pelos Países Baixo na época de 2013/14. Os testes foram bem sucedidos e em 2016, já com Gianni Infantino como presidente, a FIFA deu luz-verde para que se começassem os testes em larga escala.
Hoje, já todos estamos habituados às paragens para verificação de lances ou ao ‘suspense’ gerado enquanto se espera pela confirmação de um golo, mas há ainda aqueles que preferiam que a tecnologia não existisse.
Relativamente a este tópico, já se ouviu de tudo:
retira emoção ao jogo;
aproxima-nos da verdade desportiva;
cria demasiado tempo morto;
ajuda a minimizar a corrupção;
desmotiva os jogadores;
ainda não está no ponto ideal para ser usada;
é inútil…
Mas como já sabe, nesta publicação há um pequeno ódio a opiniões infundadas e é por isso mesmo que vamos investigar esta questão a fundo e tentar medir o verdadeiro impacto do VAR no futebol.
Sempre com factos, sempre em busca da verdade. Venha daí!
Qual a função do VAR?
Parecendo que não, esta tecnologia já foi implementada há uns bons 5 anos e aquelas análises iniciais que fizemos ao protocolo já não estão frescas na nossa memória, pelo que será pertinente rever alguns conceitos básicos que fazem parte das Leis do Jogo desde a época 2018/19.
Antes de tudo, é importante entender que o VAR só pode assistir o árbitro principal em casos de “erro óbvio e claro” ou em “incidentes graves não assinalados”.
Além disso, só há quatro situações específicas em que esses erros ou incidentes podem ser analisados:
Golo ou não golo;
Penálti ou não penálti;
Cartão vermelho direto (segundo cartão amarelo não incluído);
Equívocos na identidade do jogador.
Sabendo isto, há então duas formas de ajuda que podem ser prestadas ao árbitro principal: revisão no ecrã por parte do árbitro principal em situações passíveis de interpretação ou recomendação direta do videoárbitro sem necessidade de revisão em decisões factuais.
Em termos da revisão no ecrã, existem 7 situações específicas em que isso pode acontecer:
falta atacante cometida antes de um golo;
mão na bola do atacante antes de um golo;
interferência na jogada de um jogador em fora de jogo;
falta atacante antes de um penálti;
mão na bola do atacante antes de um penálti;
falta do defensor que possa resultar num penálti;
todos os lances que possam resultar em cartão vermelho.
Finalmente, no que são as recomendações diretas do VAR, existem 6 casos:
posição de fora de jogo que resulte em golo;
saída da bola do terreno de jogo que resulte em golo;
local da falta em decisões de grande penalidade (dentro ou fora da área);
posição de fora de jogo que resulte em penálti;
saída da bola do terreno de jogo que resulte em penálti;
todos os casos de equívocos na identidade do jogador (atribuição incorreta de cartões amarelos ou vermelhos).
O que sabemos sobre o VAR
Agora que sabemos exatamente onde pode atuar o videoárbitro, vejamos o que nos dizem diversos estudos sobre esta ferramenta.
Comecemos por um estudo de 2020, patrocinado pela IFAB (International Football Association Board), a entidade que regula as Leis do Jogo. Nesta análise de 9732 verificações pelo VAR em 2195 jogos espalhados por 13 países, a mediana das durações das verificações situou-se nos 22 segundos.
Destas verificações apenas 795 mereceram revisão, das quais 534 requereram a visualização das imagens por parte do árbitro e 261 foram recomendações diretas do VAR. As medianas das durações forem 62 e 15 segundos, respetivamente.
Para além de tudo isto, o estudo ainda nos facultou a informação de que o rácio de decisões acertadas melhorou de 92,1% para 98,3% com a ajuda do VAR.
Em 2021 foi feito um estudo por um membro da Universidade Ruhr em Bochum, na Alemanha, que chega a conclusões fortes sobre a qualidade dos árbitros e a qualidade do VAR (não do sistema em si, mas do humano por detrás do sistema).
De forma simples, foi inferido que um VAR de elevada qualidade pode ajudar a mitigar os efeitos de subuso ou sobre-uso das revisões no ecrã por parte de árbitros principais de elevada ou de baixa qualidade, respetivamente.
É ainda referido que ter um VAR de baixa qualidade poderá ser pior do que simplesmente não ter um sistema de VAR no jogo.
Outra dissertação de 2022 que colocou 109 árbitros de futebol qualificados a fazer a sua avaliação de 48 situações de grande penalidade dá-nos perspetivas valiosas sobre esta temática.
Primeiramente, indica-nos que o rácio geral de acerto na decisão se situou nos 65,69%. Em segundo, ainda nos diz que mais visualizações, mais perspetivas de observação e uma menor velocidade de reprodução do vídeo, aumentam significativamente o rácio de acerto das decisões.
Olhemos agora para dois estudos que nos mostram a visão dos adeptos sobre o VAR e que tipo de sentimos este sistema lhes suscita.
Já neste ano de 2023, numa universidade portuguesa, foi elaborada uma dissertação que analisou as perceções de 154 adeptos de futebol sobre o VAR e ainda a sua abertura para a introdução de novas tecnologias no futebol.
As principais conclusões retiradas foram:
o adepto comum não têm noção da quantidade de jogos que o VAR impacta;
os adeptos acreditam que o VAR melhorou a justiça no futebol, que reduziu o enviesamento do árbitro, que melhorou a tomada de decisão dos árbitros principais e que alterou o foco das discussões pós-jogo;
os adeptos tendem a confiar no VAR e a concordar com as suas decisões;
as interrupções para verificações do VAR afetam negativamente a experiência de ver um jogo;
os adeptos que frequentam os estádios acreditam que as decisões do VAR deveriam ser transmitidas em direto nos estádios;
a grande maioria dos adeptos é a favor da introdução da tecnologia da linha de golo e do VAR no futebol;
a maioria dos adeptos está aberto à introdução de inteligência artificial no futebol para melhorar a justiça.
Finalmente, de um estudo de 2022 da Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia, chegam-nos análises de entrevistas a jogadores e adeptos e ainda “análises de sentimento” de conjuntos anuais de 5000 tweets entre 2019 e 2022.
As grandes conclusões do estudo foram que tanto adeptos como jogadores afirmam que o VAR cria sentimentos consistentes de dúvida e esperança devido ao ‘suspense’ que gera em momentos-chave do jogo. Também ficou claro que consideram o VAR como ambíguo e como um fator disruptivo do tempo e fluidez dos jogos. A análise do Twitter revela que os sentimentos relativamente ao VAR são um pouco mais negativos do que positivos, mas sem grande significância.
Conclusão
Após a análise destes estudos parece claro que o impacto global do VAR é positivo.
Não restam grandes dúvidas em como esta tecnologia tem vários benefícios e o sentimento geral não é tão negativo como se poderia pensar após um jogo em que uma decisão escandalosa prejudique uma qualquer equipa.
Há efetivamente algum tempo perdido, mas a mediana de 22 segundos para as verificações e até mesmo os 62 segundos para a verificação no ecrã são o preço a pagar para termos um rácio de decisões acertadas acima de 98%. Se a isto compararmos aqueles irritantes segundos dos jogadores a rebolar e a gritar no relvado após um toque inofensivo ou a demora na reposição da bola em jogo, então parece-me que os segundos do VAR são bem melhor empregues.
É importantíssimo ter um videoárbitro de topo, mais até do que o árbitro principal. Isto pode ser uma informação disruptiva no que toca à nomeação de árbitros para cada jogo, onde a importância do posto comece a pender mais para o lado do VAR. No entanto, é evidente que ter um árbitro competente em campo continua a ser ideal, visto que as taxas de acerto só a olhar para o vídeo são demasiado baixas (65,69%).
A análise de sentimento do Twitter tem muito valor porque as redes sociais, em geral, e o Twitter em particular, são um mecanismo de bipolarização de ideias. O facto de termos obtido resultados quase neutros nos sentimentos neste rede social sobre uma matéria relacionada com arbitragem é muito positivo e demonstra que o mecanismo tem uma grande base de apoio.
Para terminar, penso que seja justo dizer que o VAR veio para ficar e só poderá continuar a melhorar com o passar do tempo. Se considerarmos ainda que a inteligência artificial pode ter aqui um papel a desempenhar, então o futuro parece ser cada vez mais “justo”, pelo menos no futebol.
Resta saber se conseguiremos manter o futebol como um jogo e não um videojogo.
Um abraço e um “tiro” de Eusébio da Silva Ferreira,
João Francisco
Prolongamento
Facto 🔍
O maior resultado de sempre num jogo de futebol aconteceu em 2002, em Madagáscar: AS Adema 149–0 SO l'Emyrne
Leitura 📖
Football’s first female super-agent Rafaela Pimenta on dealmaking and discrimination
🖋 Simon Kuper no Financial Times