Caro leitor, hoje a Factball é um pouco diferente.
Continuarei a recorrer aos factos, como sempre, mas vou também utilizar todo o meu conhecimento de Better Call Saul e de Suits para montar um caso de defesa do futebol na América do Norte, ou soccer, como dizem os locais…
Há um pensamento predominante nas cabeças dos adeptos mais conservadores do nosso desporto favorito: o futebol agora é um negócio, o jogo como o conhecíamos morreu.
Eu não gosto de ser tão dramático porque ainda há belos e recentes exemplos de amor à camisola, mas é incontestável que a indústria cresceu tanto nas últimas décadas, que não é somente mais um desporto.
Assim sendo, e reduzindo-nos à nossa insignificância enquanto adeptos, a única coisa que podemos fazer para combater o crescente mercantilismo das principais ligas europeias, aparentemente, é desviar a nossa atenção para produtos mais “puros”. E olhando para aquilo que é o panorama global do futebol, a principal divisão norte-americana de futebol, ou Major League Soccer, perfila-se como um sério candidato à atenção do mundo!
Se não acredita, sente-se num lugar confortável e assista a este “julgamento”.
Está aberta a sessão
A Major League Soccer (MLS) é a principal divisão de futebol na América do Norte e a época que inicia em Fevereiro inclui um total de 29 equipas, sendo que 26 são dos Estados Unidos da América e 3 do Canadá.
Por muitos ainda é vista como uma liga sem importância onde os jogadores “bons” e “europeus” vão para acabar a carreira. O exemplo de Gareth Bale será talvez o mais recente e faz com que não se possa dizer que isso já não é verdade.
Contudo, a competição está em clara mudança e expansão.
A "prestação da MLS” no último Campeonato do Mundo no Catar é uma prova irrefutável da qualidade da liga. De acordo com a minha pesquisa para a Factball #7, a MLS foi a oitava liga no mundo com mais jogadores convocados para o Mundial que tiveram tempo de jogo, ficando à frente das primeiras divisões de países como Portugal, Holanda, Bélgica, Turquia, Brasil e Argentina, e a décima em termos do total de minutos jogados.
Para além disto, há alguns dados a reter da edição de 2022 da MLS:
A MLS tem os fãs mais novos de qualquer desporto profissional nos Estados Unidos, com uma média de 39,6 anos;
Mais de 10 milhões de adeptos foram aos estádios durante a fase regular, ultrapassando os 8,6 milhões de 2019;
3 clubes (Atlanta United FC, Charlotte FC e Seattle Sounders FC) tiveram uma assistência média por jogo de mais de 30.000 adeptos nos seus estádios;
Aumento de 13% nos espectadores das transmissões televisivas nos canais FOX e ESPN nas variantes de língua espanhola;
As vendas anuais de merchandising aumentaram 10%;
Aumento de 65% nos seguidores nas redes sociais.
Bem sei que isto é tudo muito bonito, mas não é suficiente para o impressionar, portanto passemos à fase em que a acusação e a defesa apresentarão os seus argumentos para que possamos julgar o caso.
Argumentação
Permita-me começar dizendo: Não! O facto de os locais lhe chamarem soccer não pode ser usado como um argumento para que nunca mais assistamos a esta liga. Compreendo perfeitamente que se sinta instigado a usá-lo e até acho que tem toda a razão, mas há batalhas que não vale a pena travarmos…
Clubes
Acusação
A principal motivação para criar uma equipa é a componente financeira, ao contrário de quando se criaram os primeiros clubes europeus, pelo prazer de jogar.
A ligação emocional dos adeptos com os clubes é muito reduzida e não se compara sequer à ligação com outros clubes americanos noutros desportos.
O futebol foi imposto aos Estados Unidos quando estes quiseram sediar o Campeonato do Mundo de 1994 e por isso os clubes não têm história nem foram criados com base em causas relevantes. Todos têm menos de 30 anos.
Defesa
Qualquer que seja o objetivo aquando da criação do clube, a verdade é que vai desenvolver o gosto por desporto nos mais jovens, vai incentivar a prática desportiva e no longo prazo, ter um impacto positivo na sociedade.
Sabemos que a lealdade e o sentimento de pertença aparecem com o passar do tempo e com o nível de envolvimento, portanto, as ligações emocionais com os clubes da MLS e com o próprio desporto estão a crescer diariamente.
Mesmo sendo a MLS uma liga recente, o futebol organizado nesta parte do globo existe há muitos anos, desde 1862. Outro exemplo da tradição do desporto no país é a Lamar Hunt Open Cup (o equivalente à FA Cup em Inglaterra) que ainda é jogada hoje em dia e teve o seu início em 1914.
Estádios
Acusação
A maioria dos estádios são pequenos e isso impossibilita que se criem grandes ambientes.
Há estádios que nem sequer são exclusivos para jogar futebol.
Defesa
Estádios mais pequenos funcionam como um estúdio de gravação perfeito para criar transmissões televisivas de alta qualidade. Não só há menos lugares vazios, como é possível captar muito melhor o som e os cânticos dos adeptos. Para além disso, a proximidade ao relvado e a tecnologia usada permitem que a experiência seja melhor para quem assiste aos jogos ao vivo.
Dos 29 estádios da liga, apenas 7 não são específicos para jogar futebol e 11 deles têm 5 anos ou menos.
Plantéis
Acusação
Ainda não há a qualidade que os clubes de topo na Europa têm.
Os clubes só atraem jogadores de topo em idade avançada que vêm em busca do último grande contrato da carreira.
Defesa
O modelo económico da MLS não permite que haja gastos descontrolados com o salário de jogadores, uma vez que existe um teto salarial imposto pela liga. Para a época de 2023, este fixa-se em 5,2 milhões de dólares anuais, a serem distribuídos pelo plantel sénior, que terá de ter entre 18 a 20 jogadores. Ademais, estão ainda definidos salários máximos e mínimos a serem cumpridos por cada clube.
A regra do Jogador Designado permite que 3 jogadores por clube possam ganhar acima do teto acima discutido, ou seja, cada clube poderá acenar com salários chorudos para as estrelas maiores do desporto. Alguns dos casos mais sonantes em 2022 foram os de Lorenzo Insigne, Xherdan Shaqiri, Hector Herrera, Chicharito Hernandez, Christian Benteke e Gonzalo Higuain.
Há uma crescente atração de grandes talentos em início de carreira que vêm a MLS como uma ótima oportunidade de crescimento, encabeçados pelo argentino Thiago Almada. Outros casos dignos de nota são Talles Magno, Juan Mosquera e Alan Velasco que estão no top-10 da sua posição dos jogadores jovens mais promissores do mundo de acordo com o CIES.
Meritocracia
Acusação
O facto de as equipas não subirem nem descerem de divisão faz com que a competitividade seja menor e não haja riscos na tomada de decisão, em claro contraste com a Premier League inglesa, por exemplo, onde uma descida de divisão tem um impacto tremendo nas contas dos clubes.
Defesa
O modelo da MLS, e de resto dos outros principais desportos no país, de facto não prevê subidas e descidas de divisão, mas isso permitiu que num curto espaço de tempo os clubes participantes tenham experienciado crescimentos financeiros consideráveis e assim consigam atrair talento para as suas fileiras, aumentando consequentemente o valor e qualidade da liga. Tomando novamente a Premier League como ponto de referência, e excluindo os Big 6, em 2021, o Everton era o clube mais valioso, avaliado em 525 milhões de dólares. Ora, na MLS, no mesmo período, havia 14 equipas com essa avaliação ou superior.
Liberdade criativa
Acusação
Iniciativas como o Jogo dos Estrelas e a Semana das Rivalidades são desvirtuosas para o desporto-rei porque focam-se mais na vertente do espetáculo do que no jogo em si.
A existência de um Draft faz com que as equipes que estão na parte de baixo da tabela classificativa no final do campeonato tenham incentivos para perder partidas propositadamente, adulterando um pilar do desporto profissional: ganhar.
Defesa
O Jogo das Estrelas, mais conhecido como All-Star Game, é uma forma de atrair mais adeptos para o jogo e de conseguir, de uma forma descontraída e divertida, mostrar os craques em ação e colocar de lado as rivalidades clubísticas, unindo todos os adeptos do país. Para além disso, as duas últimas edições contaram com um formato interligas, em que as estrelas da MLS defrontaram as estrelas da liga mexicana (Liga MX). Tudo em nome da promoção do desporto e do espetáculo.
Quanto à Semana das Rivalidades, é simplesmente uma forma de agregar vários jogos com conotações de rivalidade no espaço temporal de uma semana, onde equipas do mesmo estado ou de estados vizinhos se defrontam e onde há várias ações promocionais por parte da liga para atrair mais adeptos. Simplesmente marketing em ação.
Falando agora dos dois principais “sorteios” da MLS: o SuperDraft e Expansion Draft.
O SuperDraft desenrola-se como noutras modalidades americanas, onde as equipas com pior classificação têm direito às primeiras escolhas no que toca a atletas que jogam nos campeonatos universitários. Ora isto é muito relevante noutros desportos como a NBA e a NFL, mas no futebol, nem tanto. Isto porque os atletas mais talentosos têm um mercado enorme a tentar assegurar os seus serviços, principalmente na Europa e não há nada que os impeça de assinar por esses clubes. Assim, os melhores jogadores disponíveis para o Draft acabam por não ser futebolistas diferenciados e que tenham um impacto imediato nos clubes. Há até quem diga que este modelo está obsoleto no futebol, uma vez que não tem efeitos práticos nenhuns e as cerimónias até já são feitas por videoconferência.
Por outro lado, o Expansion Draft é um mecanismo interessante de ajuda às equipas que entram pela primeira vez na liga. Após cada equipa já presente no campeonato selecionar 12 jogadores dos seus plantéis para serem protegidos, o estreante poderá “roubar” 5 jogadores não protegidos, com o limite de um por equipa. Mais entretenimento para os adeptos e “novas oportunidades” para alguns jogadores, o que poderá haver de errado nisto?
Alegações finais
Depois desta “enxurrada” de informação, acha que a MLS é de facto o novo “futebol de antigamente”?
Entendo que seja difícil comparar todo este marketing e poderio financeiro com o futebol europeu dos anos 50 ou 60, mas no meu entender há alguns pontos fundamentais que me levam a pender para o lado da defesa.
O modelo económico mais sustentável é um dos principais. Nos últimos anos temos visto um investimento astronómico nas equipas europeias provenientes dos mais variados sectores, desde petrodólares a empresas de private equity, e mesmo assim parece que nunca chega.
Depois, podemos ver que as características geográficas do continente americano e a distribuição dos clubes da MLS pelos diversos estados parecem enquadrar-se numa lógica de "Liga dos Campeões” da América, onde equipas representam estados inteiros, ao invés de países.
Para além disso, há vários fatores que me levam a crer que o potencial de crescimento da liga é imenso:
Ainda existem 30 estados americanos que não têm qualquer equipa a competir na MLS;
O crescimento de adeptos nos estádios, audiências na televisão e receitas totais é acentuado e mesmo assim ainda é só o 6º desporto no país, estando muito próximo do hóquei no gelo e do boxe;
O novo acordo com a Apple para os próximos 10 anos que garantiu 2,5 mil milhões de dólares à MLS em troca dos direitos televisivos, que passaram a estar disponíveis na plataforma de streaming da empresa da maça.
Este crescimento do número de equipas, do interesse pelo desporto e das verbas envolvidas poderão, no longo prazo, traduzir-se na criação de uma segunda (e até terceira) divisão e assim resolver o “grave” problema da meritocracia.
Finalmente, a falta de “amarras” históricas e de fundamentalismos fazem com que a implementação de novas estratégias de marketing ou de gestão seja feita de forma célere, o que beneficia todos os intervenientes.
A verdade é que tudo vai depender da evolução na quantidade de adeptos que o jogo em si tenha no país, e isso começa também nas crianças e na criação de oportunidades para que joguem futebol regularmente, nas ruas e nas escolas. O Campeonato do Mundo de 2026 também irá ajudar neste “luta”.
Está assim encerrada esta sessão, sem saber ao certo se consegui “absolver” a MLS neste caso gravíssimo de assédio à hegemonia europeia. A decisão fica do seu lado!
Um abraço e um passe de letra de Pablo Aimar,
João Francisco
Prolongamento
Facto 🔍
O guarda-redes Hans-Jörg Butt marcou três golos na Liga dos Campeões da UEFA - todos de penalty, todos por clubes diferentes e todos contra a Juventus.
Artigo interessante. Eu vivo nos EUA há muitos anos e nunca tive grande curiosidade pela MLS. Mas recentemente tenho vindo a tentar seguir um pouco a liga e também foi criado o Inter Miami e agora tenho equipa local. Não sei se a MLS é voltar ao futebol de antigamente mas tem pelo menos a vantagem de ter uma base mais jovem de fãs. E o futebol tem muitos praticantes jovens nos EUA, pelo que há sempre muito potencial.
Os maiores "problemas" para mim, e talvez também para vender a MLS na Europa, são a questão da inexistência de divisões e o formato de campeonato com play-off. E não julgo que isso vá mudar porque seria uma ruptura com o formato dos outros desportos americanos.
Mas julgo que é uma liga com muito potencial e com maior capacidade para atrair o público da América Latina do que os campeonatos europeus.
Quero também dar os parabéns pelo substack e fazer uma pergunta. Os textos são originalmente escritos em português ou inglês?